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Era uma vez um homem que tinha seis filhos aos quais não dera nomes, como as pessoas costumam fazer, limitando-se a chamar-lhes, de acordo com a idade, Primeiro, Segundo, Terceiro, Antepenúltimo, Penúltimo e Último.
Quando o Primeiro completou dezoito anos e o Último doze, o pai mandou todos percorrer mundo, para que aprendessem um ofício. Eles puseram-se a caminho e, durante algum tempo, seguiram juntos, mas não tardaram a chegar a um dupla encruzilhada, da qual partiam seis caminhos diferentes. Reconheceram então que se deviam separar e cada um optaria pelo seu próprio percurso. Decidiram igualmente que, dois anos exactos mais tarde, voltariam a reunir-se naquele local, de onde regressariam à casa paterna.
Com efeito, no dia combinado, encontraram-se de novo aí e regressaram juntos a casa do pai, o qual perguntou a cada um que arte aprendera. O Primeiro disse que se tornara mestre de construção naval e era capaz de construir barcos que se deslocavam sozinhos. O Segundo embarcara, ascendera a piloto e sabia comandar qualquer tipo de barco ou veículo. O terceiro apenas aprendera a escutar, mas conseguia, num reino, ouvir o que se passava noutro. O Antepenúltimo tornara-se atirador, e cada um dos seus disparos atingia o alvo com precisão. O Penúltimo aprendera a trepar, pelo que podia escalar uma parede como se fosse uma mosca, e não havia encosta rochosa suficientemente escarpada para o desencorajar.
Depois de se inteirar das capacidades dos cinco, o pai admitiu que não era mau de todo, mas, não obstante, esperava mais deles, pois, em última análise, o que tinham aprendido também outros eram capazes de fazer. Por fim, quis saber o que aprendera o Último, no qual sempre depositara as suas maiores esperanças, por se tratar do seu filho preferido.
O Último alegrou-se por finalmente ser a sua vez e anunciou, muito satisfeito, que se convertera em mestre do roubo. Ao ouvir aquilo, o pai ficou tão furioso, que o agarrou pelas orelhas e bradou:
— Que vergonha! Atraíste a desonra sobre mim e toda a família!
Aconteceu então que um mago de má índole roubou ao rei do seu país a jovem e encantadora filha. E o monarca prometeu-a como esposa — além de metade do reino como dote — a quem a descobrisse e arrebatasse ao raptor. Ao tomarem conhecimento disso, os seis irmãos decidiram tentar a sorte. O mestre de construção naval construiu um navio que navegava autonomamente. O piloto pilotou-o por terra e por mar. O de ouvidos apurados escutou em todas as direcções e acabou por anunciar que detectara a princesa no interior de uma montanha de cristal, para onde se dirigiram. O escalador trepou a toda a velocidade e, uma vez no topo, avistou o mago, que dormia, com a horrível cabeça pousada no regaço da princesa. A seguir, reuniu-se aos irmãos, chamou o ladrão magistral, fê-lo subir para as suas costas e conduziu-o ao topo. O ladrão magistral tirou a princesa de baixo da cabeça do mago sem que este se apercebesse, após o que o escalador transportou ambos até ao navio.
Depois de se encontrarem todos a bordo, zarparam. Entretanto, o de ouvidos apurados não parava de prestar atenção aos movimentos do mago. Ainda não se tinham distanciado muito, quando comunicou aos irmãos:
— Acaba de acordar... Espreguiça-se... Dá pela ausência da princesa... Começa a dirigir-se para aqui!
A princesa revelou então um medo intenso e declarou que estariam todos perdidos, a menos que houvesse um atirador excelente a bordo, pois o mago podia deslocar-se pelo ar até qualquer lugar e não tardaria a alcançá-los. Acrescentou que era invulnerável e as balas não o molestavam, salvo se o atingissem num pequeno ponto negro que tinha no peito, não maior que o buraco de uma agulha.
E, na verdade, o mago surgiu a sobrevoar o navio a toda a velocidade. Sem perda de tempo, o atirador visou-o com a arma, disparou e atingiu-o em pleno sinal preto no meio do peito. Quase simultaneamente, o mago explodiu em milhares de pedaços incandescentes, que dispersaram fumegantes, em todas as direcções, sendo por esse motivo que se encontram tão grandes quantidades de pederneira em todas as partes do mundo.
Os seis irmãos chegaram por fim a casa com a princesa, que depois conduziram à corte do pai. Todos se tinham apaixonado por ela e cada um podia afirmar que, sem a sua intervenção, nunca se salvaria. O rei viu-se então perante um grande dilema, por não saber a qual devia entregar a filha. E ela achava-se em idênticos apuros, já que não conseguia determinar qual amava mais.
Deus, contudo, não quis que houvesse divergências contundentes entre eles, pelo que fez com que os seis irmãos e a princesa morressem na mesma noite. Depois, distribuiu os sete pelos céus, convertidos em estrelas, que são as que agora conhecemos por Plêiades. A mais brilhante é a princesa e a menos visível o pequeno ladrão.
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Era uma vez um viúvo e uma viúva que casaram um com o outro. Cada um deles tinha uma filha — a do marido era formosa e elegante e a da mulher muito feia. A viúva tinha inveja da enteada, por ser muito mais bonita que a sua filha, pelo que passava o tempo a pensar como a podia prejudicar, e tratava-a pessimamente. O marido permanecia quase todos os dias fora de casa, de manhã à noite, razão pela qual não se achava muito informado sobre a situação da jovem.
Uma noite, quando já estavam todos deitados, bateram à porta, e a mulher disse à filha que fosse ver quem era. Como esta não se mostrasse muito entusiasmada em obedecer, a enteada ofereceu-se para o fazer, mas não lho permitiram, pois a mulher estava empenhada em que fosse a filha. Por conseguinte, a jovem retirou o ferrolho, abriu a porta e viu um veado ou algo parecido. Sem perda de um segundo, pegou numa vassoura e fez menção de o agredir, conseguindo assim pô-lo em fuga. Depois, fechou de novo a porta e foi contar o sucedido à mãe. Na noite seguinte, quando se preparavam para aferrolhar a porta, voltaram a bater, mas desta vez a filha da mulher não se atreveu a ir abrir, e ninguém se opôs a que o fizesse a enteada, à qual se deparou o mesmo veado.
— Coitadinho — murmurou ela. — De onde vens?
— Sobe para o meu dorso, menina! indicou o veado.
Mas ela disse que não estava disposta a fazê-lo, pois ele já tinha dificuldades suficientes ao carregar consigo próprio. O veado explicou que era a única maneira de o poder acompanhar, perante o que ela subiu para o seu dorso — pois não queria continuar em casa — e partiram.
Pelo caminho, chegaram a uma planície, e ele perguntou:
— Que dirias se, um dia, nos pudéssemos divertir aqui?
No entanto, a jovem não conseguia conceber como se poderiam divertir ambos naquele prado.
Finalmente, chegaram a um enorme palácio. O veado introduziu a companheira e disse-lhe que, dai em diante, teria de viver lá completamente só, mas veria todos os desejos realizados, e que tentasse passar o tempo o melhor que pudesse. Garantiu-lhe que, um dia, viria visitá-la e pediu que não entrasse num lugar em que havia três portas — uma de madeira, outra de cobre e a terceira de ferro. Não as devia abrir sob pretexto algum. Entretanto, estava intimamente convencido de que seria a primeira coisa que faria.
Ela passou o resto do dia totalmente só. Chegou a noite e, na manhã seguinte, decidiu percorrer todo o palácio. Invadiu-a então uma vontade tão forte de abrir a porta de ferro, que não lhe pôde resistir. Fê-lo e viu lá dentro dois homens que remexiam com as mãos e os braços uma caldeira de alcatrão, aos quais perguntou porque procediam assim sem usarem qualquer protecção. Eles responderam que estavam condenados a fazê-lo até que uma alma cristã lhes fornecesse algo para remexer o alcatrão. Sem hesitar, ela pegou numa acha, improvisou com ela uma espécie de colher plana e entregou-a aos homens.
O dia foi-se escoando e anoiteceu. Na manhã seguinte, ela ouviu muito barulho na corte e viu vários homens que davam de beber aos cavalos e numerosos serviçais a limpar as pratas. Todos estavam muito ocupados e moviam-se de um lado para o outro. A jovem teve então vontade de abrir a segunda porta. Era a de cobre, e viu duas raparigas que espevitavam o lume com as mãos. Perguntou-lhes porque o faziam e responderam que tinham sido condenadas a proceder assim até que uma alma cristã lhes fornecesse alguma coisa para substituir as mãos. Sem hesitar, ela foi buscar uma barra de ferro, que lhe agradeceram com gratidão. Na manhã seguinte, todo o palácio estava cheio de moças, que varriam, lavavam e punham tudo em ordem. Deixou o dia desenrolar-se sem fazer nada, mas, a certa altura, não se pôde conter mais — tinha de abrir também a porta de madeira. Quando o fez, encontrou-se perante o veado num leito de palha e perguntou-lhe, naturalmente, porque estava ali deitado. Ele explicou que tinha de se conservar assim até que um alma cristã lhe limpasse a sujidade. Sem hesitar, a jovem pegou num molho de palha e começou a limpá-lo. A medida que o fazia, o veado transformava-se no príncipe mais atraente que ela jamais vira. Depois, contou-lhe que todo o palácio tinha sido encantado, porém ela agora conseguira quebrar o feitiço, pelo que queria desposá-la, e foi uma boda extraordinária que se prolongou por vários dias.
Passado algum tempo, ele perguntou à esposa se queria convidar a madrasta e a filha e ela respondeu que sim, que gostaria muito de as voltar a ver. O marido referiu então que não poderia estar presente, quando chegassem, e recomendou-lhe que, ao servir vinho ou qualquer outra coisa, deixasse cair uma gota no sapato. Ele apareceria então e limpá-la-ia. Além disso, advertiu-a de que não desse à madrasta nada que fosse uma, duas ou três coisas — tinham de ser mais de três, como cereais ou algo do género.
Quando a madrasta e a filha chegaram, a princesa — pois agora era princesa — mostrou-se muito atenciosa. Ofereceu-lhes vinho e deixou derramar uma gota no seu sapato dourado. No mesmo instante, surgiu o príncipe, que limpou a nódoa com o lenço. Se as outras ainda não estavam abismadas com o que as rodeava, ficaram-no sem dúvida quando o viram aparecer.
Mais tarde, saíram ao jardim, e a madrasta empenhou-se em que a princesa lhe colhesse uma maçã, mas ela não quis. A mulher insistiu que queria maçãs que não fossem mais de três. No entanto, a princesa manteve a sua posição e disse-lhe que teria todas as que desejasse, quando estivessem maduras. A outra ficou então furiosa. De regresso a casa com a filha, corroía-a a inveja de não ter sido esta a alcançar semelhante felicidade. Estava tão indignada, que não se conteve de a acusar culpada de tudo. A filha insurgiu-se e, palavra puxa palavra, acabaram por se puxar os cabelos, até que se desfizeram e converteram num monte de seixos rolados. É este o motivo por que há tantos seixos rolados no mundo.
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Era uma vez uma mulher que tinha três filhas. Um dia, elas tiveram de cardar linho e, enquanto o faziam, apareceu a mãe para verificar como o trabalho decorria. Entretanto, um porco entrou a correr no quintal e comeu as couves. A mulher mandou a filha mais velha afugentá-lo, pelo que esta se pôs a correr com o cardador de linho na mão.
Mas quando chegou ao local onde o animal se encontrava, este gritou:
— Faz-me cócegas! Faz-me cócegas!
— Sim! — replicou ela. — Vou fazer-te tantas, que morrerás de medo!
Começou a persegui-lo, mas o porco desapareceu no bosque próximo. Em seguida, formou-se um nevoeiro tão intenso, que ela se sentiu totalmente perdida. No entanto, o porco escondeu-se atrás de uma moita e reapareceu convertido num ser humano, o qual pediu à jovem que o acompanhasse, para viver em sua casa. Assegurou-lhe que levaria uma vida regalada e apenas teria de preparar a comida para ambos. A parte isso, poderia proceder como entendesse. Como ela não era capaz de encontrar o caminho de regresso, pois estava completamente perdida, decidiu aceitar a proposta.
No dia seguinte, a mãe e as outras duas filhas faziam pão, quando tornou a entrar um porco no quintal. A mulher disse à segunda filha que o afugentasse imediatamente e a jovem perseguiu-o com o atiçador na mão, mas, quando estava prestes a alcançá-lo, o porco gritou como anteriormente:
— Faz-me cócegas! Faz-me cócegas!
— Espera e verás as que te vou fazer! — replicou ela, brandindo o atiçador.
O animal recomeçou a correr, com a jovem no seu encalço, até que chegaram ao bosque, onde se formou o mesmo nevoeiro intenso e ela sentiu-se totalmente perdida. Deixou de ver o porco, mas, de repente, surgiu um homem, que a convidou a acompanhá-lo a casa, onde viveria sem ter de trabalhar e poderia admirar todo o seu ouro e prata. A única coisa que lhe estaria vedada seria determinado aposento.
No dia seguinte, a mãe e a filha que restava cardavam linho, quando tornaram a ver um porco no quintal. A filha quis ir expulsá-lo, mas a mãe não o permitiu, pois temia que ela desaparecesse, como acontecera às duas irmãs.
— Não te preocupes — disse a jovem. — Terei cuidado.
E pôs-se a correr atrás do porco, que repetiu de novo o desafio:
— Faz-me cócegas! Faz-me cócegas!
— Vais ficar admirado com as que te farei — replicou ela, tentando atingi-lo com a carda.
— Sim, podes fazer-me cócegas — volveu o porco, correndo em direcção ao bosque, com ela no seu encalço.
Mas formou-se mais uma vez um nevoeiro intenso e ela acabou por se perder. O porco transformou-se, então, num homem, que lhe pediu que o acompanhasse e se tornasse sua mulher. Assegurou-lhe que apenas teria de preparar a comida para ambos e abster-se de entrar em dois aposentos que havia em casa (tratava-se dos quartos onde mantinha encerradas as duas irmãs). E como a jovem não conseguia encontrar o caminho de regresso a casa, aceitou a proposta.
Estava-se na verdade muito bem na casa, onde havia quantidades assombrosas de artigos de ouro e de prata. Apesar disso ela não se sentia feliz, pois sabia que a mãe devia estar preocupada por desconhecer o seu paradeiro. Para mais, não fazia a menor ideia de como poderia voltar para lá.
O homem passava todo o dia ausente, pelo que, entretanto, a jovem fazia o que queria em casa. Um dia, lembrou-se de espreitar pelo buraco da fechadura de cada um dos quartos em que não podia entrar e descobriu que as duas irmãs se encontravam ai encerradas. Chamou-as e começaram a conversar através das portas trancadas, ponderando uma maneira de voltarem a estar juntas e regressar a casa. Uma delas sabia que a chave se achava em determinado armário, pelo que a moça que desfrutava de liberdade de movimentos não tardou a apoderar-se dela. Ao mesmo tempo, dava tratos à imaginação para descobrir uma forma de recuperarem a liberdade e porem termo à angústia da mãe.
Quando o homem regressou a casa, à noite, queixou-se do frio intenso que fazia.
— Nós podemos defender-nos, mas como resistirão os meus pobres pais? — alegou a jovem. — O combustível de que dispõem não lhes permite um aquecimento eficiente.
Ele declarou então que não via qualquer inconveniente em os ajudar nesse aspecto. Acrescentou que iria lá nessa mesma noite e pediu-lhe que enchesse um saco de carvão e o atasse. Ela mostrou-se profundamente grata e ficou muito satisfeita. Depois, pegou num saco, colocou no fundo ouro e prata, a seguir a irmã mais velha e cobriu-a de carvão, para que ele não suspeitasse de nada, recomendando àquela:
— Se, pelo caminho, ele quiser desatar o saco para espreitar, dirás: "Olha que te estou a ver!" Assim, pensará que o vigio.
Quando o homem pegou no saco, a jovem recomendou-lhe que não o abrisse, pois ela ficaria a vigiá-lo, para ver se levava o carvão directamente aos pais. Ele acedeu, mas quando percorrera uma boa parte do caminho, murmurou:
A carga é pesada e o percurso longo.
Porque será que o saco pesa tanto?
Nessa altura, a jovem encerrada no saco exclamou:
— Olha que te estou a ver! Olha que te estou a ver!
O homem assustou-se, convencido de que a esposa continuava a observá-lo, e grunhiu:
Malditos sejam os teus olhos, que são
capazes de ver através de montanhas e vales.
Estugou o passo para chegar o mais depressa possível, entregou o saco e disse que continha carvão para se aquecerem. Quando os pais o abriram, congratularam-se por terem recuperado a filha mais velha.
O homem regressou a casa, mas estava tão cansado, que não entrou nos aposentos, como costumava fazer. No dia seguinte, a esposa salientou que continuava a fazer muito frio e receava que os pais já tivessem consumido todo o combustível, pelo que lhe perguntou se queria levar-lhes outro saco de carvão.
— Está bem — assentiu o homem, e pediu-lhe que o enchesse.
Ela voltou a colocar ouro e prata no fundo, a seguir a segunda irmã e, por cima, algum carvão e procedeu a idêntica recomendação. O homem partiu carregado com o saco, mas, quando já percorrera uma distância considerável, disse:
A carga é pesada e o caminho longo.
Porque será que o saco pesa tanto?
A irmã que se encontrava dentro do saco exclamou:
— Olha que te estou a ver! Olha que te estou a ver!
Ele convenceu-se de novo de que a esposa o vigiava e grunhiu:
Malditos sejam os teus olhos, que são
capazes de ver através de montanhas e vales.
Estugou o passo para chegar o mais depressa possível e largou o saco à entrada ruidosamente. De regresso a casa, quis dar uma vista de olhos aos quartos. No entanto, a esposa argumentou que deixasse isso para outro dia, pois o jantar estava pronto e arrefeceria rapidamente. Por conseguinte, também não entrou lá, naquela noite.
No dia seguinte, esteve ausente até muito tarde, pelo que a visita ficou mais uma vez adiada. Todavia, quando chegou a casa, a esposa tornou a pedir-lhe que levasse mais um saco de carvão aos pais.
— Está bem — concordou ele. — Mas é o terceiro e último. Ela disse que concordava e não o tornaria a incomodar com pedidos dessa natureza.
— Mas não me sinto muito bem, hoje — explicou. — Se não encontrares o saco atado, é porque me fui deitar. Sendo assim, ocupa-te tu disso.
O marido replicou que sim, que o faria.
Quando partiu, a esposa colocou uma almofada longa sob os lençóis da cama, introduziu ouro e prata num saco, entrou em seguida e cobriu-se com algum carvão. Quando o homem chegou, à noite, viu que o saco não estava atado, concluiu que ela já se deitara, atou-o e partiu com ele às costas. Mais ou menos a meio do percurso, disse:
A carga é pesada e o caminho longo.
Porque será que o saco pesa tanto?
E ela exclamou de dentro do saco:
— Olha que te estou a ver! Olha que te estou a ver!
— Está bem! — grunhiu ele, que continuou:
Malditos sejam os teus olhos, que são
capazes de ver através de montanhas e vales.
E estugou o passo para chegar o mais depressa possível.
— Aqui têm! — bradou, largando o saco à entrada da casa. — Mas é o último, ouviram?
Eles agradeceram-lhe muito e sentiram-se totalmente felizes, porque tinham recuperado todas as filhas. Ele próprio as levara e encarregara-se de as devolver, ainda que inconscientemente.
Quando chegou a casa, o homem dispôs finalmente de tempo para visitar os quartos. Ao vê-los vazios, correu para o seu, com a intenção de increpar a esposa. Chamou-a e sacudiu-a, mas a única coisa que encontrou entre as mãos foi uma longa almofada. Compreendeu então que tinha sido ludibriado e ficou tão furioso que explodiu num monte de pequenas pedras como as que se nos introduzem nos sapatos.
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Era uma vez um homem que tinha três filhos. Quando estava prestes a morrer, chamou-os e disse que a única coisa que tinha para lhes deixar era o pomar, pelo que o deviam repartir de modo que cada um ficasse com uma parte. Acrescentou que uma das árvores produzia frutos da saúde, mas absteve-se de explicar qual ou onde se situava.
Poucos dias mais tarde, expirou e os filhos prepararam-se para dividir a herança. Mas o mais novo era ainda tão pequeno que não o incluíram e repartiram o pomar em duas partes iguais. O irmão deserdado ficou apenas com a árvore solitária situada no centro do terreno. Decidiram não lhe atribuir terras, por pensarem que, se fosse precisamente aquela a da saúde alguns frutos cairiam nas áreas que lhes pertenciam.
Um dia, inteiraram-se de que a princesa do pais estava gravemente doente e o rei prometera concedê-la como esposa, além de oferecer metade do reino, a quem fosse capaz de a curar. Em face disso, os irmãos decidiram tentar a sorte. O mais velho foi o primeiro a dirigir-se ao pomar com uma cesta no braço, para colher uma peça de fruta de cada uma das suas árvores, após o que se encaminhou para o palácio. No entanto, o percurso obrigava-o a atravessar um bosque e, assim que penetrou nele, surgiu-lhe uma mulher idosa.
— Bom dia. Que levas na cesta?
— Rãs e sapos — replicou o rapaz. — Mas que tens com isso?
— Então, serão rãs e sapos — decidiu ela, e afastou-se.
Ele reatou a marcha até que alcançou o palácio, onde um guarda lhe perguntou:
— Que pretendes, rapaz?
— Trago na cesta frutos da saúde e quero entrar para curar a princesa — foi a resposta.
Disseram-lhe que admiravam a boa intenção, mas primeiro tinham de inspeccionar o conteúdo da cesta. Quando levantaram a tampa, depararam-se-lhes numerosas rãs e sapos, que tentavam sair. Acto contínuo, aplicaram uma valente tareia ao rapaz e expulsaram-no. Entretanto, o segundo irmão foi por sua vez ao pomar e encheu uma cesta com todo o tipo de frutos. Ao entrar no bosque, encontrou-se com a mesma velha, que o cumprimentou e perguntou que continha a cesta.
— Serpentes e víboras — informou o rapaz, não sem alguma brusquidão.
E ela replicou:
— Então, serão serpentes e víboras.
Uma vez diante da entrada do palácio, ele pretendeu passar com os frutos da saúde, mas, quando os guardas levantaram a tampa da cesta, viram-se perante as serpentes e víboras mais repelentes, o que lhe valeu uma tareia não menos contundente que a sofrida pelo irmão.
Por último, o mais novo dos três rapazes quis tentar igualmente a sorte. Colheu frutos da sua árvore e pôs-se a caminho. No bosque, surgiu a inevitável velha.
— Bom dia. Que levas na cesta?
— Também te desejo um muito bom dia — replicou ele, cordialmente. — A cesta contém frutos da saúde.
— Então, serão frutos da saúde — determinou ela, e seguiu o seu caminho.
O irmão mais novo atravessou o bosque e, um pouco adiante, desembocou numa praia, onde viu que a rebentação arrastara para terra um grande esturjão, agora ofegante na areia.
— Vou ajudar-te, peixinho infeliz — articulou ele.
Apressou-se a lançá-lo à água e, no momento imediato, o esturjão assomou à superfície e gritou:
— Muito obrigado! Se alguma vez estiveres em apuros e puder valer-te, não hesites em me chamar.
O rapaz seguiu de novo o seu caminho. Pouco depois, avistou um corvo e um enxame de abelhas que travavam luta renhida, com estragos consideráveis em ambas as partes. Ele dirigiu-se-lhes e tentou fazer-lhes compreender a insensatez da peleja, pois podiam voar para onde desejassem. Reconheceram que tinha razão e, enquanto se afastavam, tanto o corvo como as abelhas lhe gritaram:
Obrigado pelo bom conselho! Se alguma vez te vires em apuros e pudermos ajudar-te, não hesites em nos chamar!
O jovem prosseguiu em frente, até chegar à entrada do palácio.
— Que pretendes daqui, rapaz? — perguntaram-lhe.
— Trago nesta cesta frutos da saúde, para que a princesa os coma e se cure.
Louvaram-lhe a boa intenção, mas insistiram em inspeccionar o conteúdo, porque já se lhes haviam deparado as coisas mais estranhas. Com efeito, a cesta estava cheia de maçãs de aspecto admirável. Ele ofereceu duas a um dos guardas, que comeu uma e sentiu-se imediatamente mais leve e alegre e o acompanhou à presença do rei e da princesa.
O jovem ofereceu algumas maçãs a esta última, a qual, quando consumiu a primeira, conseguiu levantar a cabeça da almofada, após a segunda pôde sentar-se e, no final da terceira, ergueu-se de um salto e pôs-se a dançar no quarto.
O rei alegrou-se profundamente e prometeu ao rapaz que seria o marido de sua filha. No entanto, ela não estava de acordo, por o considerar demasiado insignificante. Explicou ao pai que o homem com o qual se prontificaria a casar tinha de ser alguém no mundo. De qualquer modo, se devia desposar aquele jovem, este tinha previamente de recuperar o anel que o rei perdera no mar, vinte e quatro anos antes.
Ante isto, o jovem ficou preocupado. Todavia, lembrou-se do esturjão, correu à praia, chamou-o e comunicou-lhe a situação em que se encontrava. O peixe mergulhou ao fundo do mar e reapareceu pouco depois com o anel. O rapaz regressou ao palácio profundamente aliviado.
O rei recebeu-o com particular assombro, procurou a princesa e anunciou-lhe:
— Sabes perfeitamente que deves casar com quem te curou. Por conseguinte, deixa-te de exigências e desposa-o sem mais delongas.
No entanto, ela respondeu que não o podia fazer. Queria ter um marido que estivesse em condições de construir um palácio tão grande e magnificente como o do pai, além de que devia ser de cera e brilhar ao sol como se fosse de ouro puro. O rei tratou de transmitir estas exigências ao rapaz, que, a princípio, assumiu uma expressão carrancuda, mas acabou por se recordar das abelhas, afastou-se rapidamente, chamou-as e revelou-lhes o dilema em que se encontrava. Elas, porém, asseguraram-lhe que fariam tudo ao seu alcance para o comprazer. Quando, no dia seguinte, todos se levantaram, erguera-se um palácio de cera de dimensões e magnificência idênticas às do que o rei habitava, resplandecente ao sol como se fosse de ouro puro.
O monarca voltou a consultar a filha e advertiu-a:
— Agora, não posso conceder mais adiamentos. Tens de casar com ele, já que as suas capacidades excedem de longe as de qualquer homem médio.
A princesa mostrou-se muito surpreendida com o que via, mas não se deu por satisfeita. Quis que o pai comunicasse ao rapaz que obtivesse os três tições mais velhos do inferno. Prometeu que, se o conseguisse, não faria mais exigências e casaria com ele de bom grado.
O rei ficou extremamente indignado com a nova pretensão, mas acabou por ceder e informou o jovem. Este, a principio, sentiu-se muito apreensivo, mas não tardou a lembrar-se do corvo, o apóstolo de Satanás, ao qual valera numa aflição. Por conseguinte, chamou-o e expôs-lhe o problema. A ave prometeu fazer tudo ao seu alcance para o ajudar e não tardou a reaparecer com os três tições. O rapaz aceitou-os, dirigiu-se prontamente ao palácio e largou-os no regaço da princesa. Arderam imediatamente, e ela esteve na iminência de ficar sufocada com o fumo. Muito assustada, pôs-se de pé de um salto e correu para os braços do pretendente. Já não havia nada que impedisse o casamento. Celebraram-se, pois, as bodas e os noivos receberam metade do reino como dote.
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Era uma vez uma garota que guardava ovelhas e se chamava Mette. Ora, nessa altura, o príncipe inglês resolveu empreender uma viagem para procurar esposa. Quando passou junto de Mette, sentada à beira do caminho, a vigiar as ovelhas, saudou-a e perguntou:
— Como te sentes?
— Bem. Agora uso andrajos, mas quando casar com o príncipe de Inglaterra, vestirei peças de ouro.
— Isso nunca acontecerá, pequena Mette!
— Veremos!
Ele continuou a procurar uma pretendente e encontrou-a, mas concordaram que, antes de casarem, a noiva o visitaria para ver onde passaria a viver. No entanto, o percurso da princesa estrangeira também passava por onde a pequena Mette guardava as ovelhas, e ela saudou-a e perguntou:
— Como vive o príncipe de Inglaterra?
— Vive bem, mas há uma laje no umbral da sua porta que descreve tudo o que uma pessoa fez.
A noiva reatou em seguida o seu caminho. Quando chegou a casa do príncipe e pisou a laje, esta proferiu:
É uma embusteira!
Esta princesa já teve um filho!
Quando o príncipe ouviu aquilo, desinteressou-se totalmente dela, pois desejava casar com uma donzela pura, pelo que a pretendente teve de regressar à origem.
Ele empreendeu nova viagem à procura de esposa e tornou a passar pelo local onde a pequena Mette se encontrava. Cumprimentou-a e perguntou:
— Como te sentes, hoje?
— Bem. Agora uso andrajos, mas quando casar com o príncipe de Inglaterra, vestirei peças de ouro.
— Isso nunca acontecerá, pequena Mette!
— Veremos!
Ele prosseguiu o seu caminho e voltou a ter sorte no pedido de casamento. Uma princesa estrangeira acedeu desposá-lo, pelo que concordaram que o visitaria, condição que o príncipe impunha sempre. No percurso em direcção ao palácio do futuro marido, ela também passou por onde a pequena Mette se encontrava, à qual perguntou pelo herdeiro do trono de Inglaterra, e obteve a seguinte resposta:
— Vive bem, mas há uma laje no umbral da sua porta que descreve tudo o que uma pessoa fez.
Quando a pretendente pisou a laje à entrada da residência do príncipe, ouviu-a proferir:
É uma embusteira!
Esta princesa já teve dois filhos!
Ele não gostou absolutamente nada de se inteirar daquilo, pelo que se desinteressou dela, pois propusera-se casar com uma donzela pura.
Mas necessitou de procurar novamente uma pretendente, e o percurso, como sempre, conduziu-o ao local onde a pequena Mette se encontrava. Cumprimentou-a mais uma vez e perguntou:
— Como estás, pequena Mette?
— Bem. Agora uso andrajos, mas quando casar com o príncipe de Inglaterra, vestirei peças de ouro.
— Isso nunca acontecerá, pequena Mette!
— Veremos!
O príncipe seguiu o seu caminho e chegou ao local onde vivia a princesa com a qual desejava casar. O pedido da mão desenrolou-se como ele desejava. Ela deu resposta afirmativa, concordaram que o visitaria e separaram-se. Quando a nova candidata se dirigia para a residência do príncipe, deparou-se-lhe a pequena Mette de guarda às ovelhas, à qual perguntou por ele.
— Vive bem, mas há uma laje no umbral da sua porta que descreve tudo o que uma pessoa fez — foi a resposta.
A princesa pisou a laje à entrada da residência do príncipe e este ouviu-a anunciar:
É uma embusteira!
Esta princesa já teve três filhos!
As coisas iam de mal a pior, e ela foi prontamente recambiada à procedência.
Nova digressão do príncipe, sempre empenhado em casar a todo o custo. Quando se lhe deparou a pequena Mette a cuidar das ovelhas, saudou-a e perguntou:
— Como estás?
— Bem. Agora uso andrajos, mas quando casar com o príncipe de Inglaterra, vestirei peças de ouro.
— Isso nunca acontecerá, pequena Mette!
— Veremos!
O príncipe seguiu o seu caminho, em direcção ao pais onde vivia uma quarta futura princesa, que concordou com todas as suas pretensões. Iria visitá-lo, ante o que ele regressou tranquilamente a casa.
Quando ela viajava para lá, resolveu indagar o que acontecera para que todas as suas predecessoras fossem rejeitadas. Ao passar pelo local onde a pequena Mette se encontrava com as ovelhas, começou por perguntar como vivia o príncipe inglês.
— Vive bem, mas há uma laje no umbral da sua porta que descreve tudo o que uma pessoa fez.
A seguir propôs-lhe que a substituísse na visita. Trocariam de roupa e, entretanto, a princesa ficaria a tomar conta das ovelhas. Mette concordou com satisfação, vestiu-se como uma princesa e apresentou-se em casa do príncipe. No momento em que pisou a laje, esta proferiu:
Bela donzela, linda criatura
e, na verdade, casta e pura.
— Até que enfim escolhi a apropriada! — congratulou-se ele. — Conseguiu encontrar uma jovem realmente pura!
E, para que não houvesse qualquer confusão e tivesse a certeza de a reconhecer mais tarde, entrançou-lhe um anel no cabelo e mandou-a voltar para casa até à data do casamento.
Quando abandonou a residência do príncipe, a pequena Mette trocou de novo de vestuário com a princesa e esta regressou a casa, encantada por tudo lhe ter corrido bem, pois também possuía uma deficiência.
Por fim, surgiu o dia em que o príncipe viajou a casa da noiva para a celebração da boda. No local onde se encontrava a pequena Mette, saudou-a e perguntou:
— Como estás, pequena Mette?
— Bem. Agora uso andrajos, mas quando casar com o príncipe de Inglaterra, vestirei peças de ouro.
No entanto, ele olhava-a com curiosidade, apercebeu-se de algo que brilhava no cabelo dela, sentiu curiosidade, aproximou-se e descobriu que se tratava do anel que colocara aí. Por outras palavras, a pastora estivera em sua casa em vez da princesa. Como tinha a certeza de que era uma donzela pura e havia sido enganado várias vezes, decidiu levá-la consigo e torná-la sua esposa. Outra que se encarregasse de cuidar das ovelhas.
Celebraram a boda e foi assim que, no final, a pequena Mette conquistou o príncipe de Inglaterra e pôde vestir peças de ouro.
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Era uma vez uma mulher pobre que só tinha um filho. Este chamava-se Lars, mas todos o conheciam por Lars Mandrião, pois era de tal modo madraço que nunca fazia nada, além de permanecer em casa, a um canto da estufa de cerâmica da mãe. Quando ela lhe pedia que fosse buscar alguma coisa ou fizesse um recado, costumava dizer:
— Não me apetece!
À parte isto, porém, comportava-se bem e obedecia... se lhe apetecia.
Um dia, a mãe perguntou-lhe se podia dirigir-se ao arroio para trazer um balde de água.
— Está bem, se me apetecer! — foi a resposta, e espreguiçou-se várias vezes, até que se decidiu a pegar no balde e ir enchê-lo. Chegado ao arroio, mergulhou-o na água, mas transcorreu um longo momento primeiro que tornasse a pegar na asa para o retirar. E fê-lo com um puxão brusco. Devido ao tempo que estivera imerso, o balde converteu-se numa espécie de armadilha, e um peixe ficou preso nele.
Quando Lars o recolheu, viu que o peixe nadava atabalhoadamente dentro. Isto passou-se numa época em que os peixes ainda não eram mudos ou, pelo menos, todos, pelo que aquele começou a falar e pediu-lhe que o restituísse ao arroio.
— Porque havia de o fazer? — replicou o rapaz. — Na única vez que consigo capturar um peixe de uma forma tão inesperada, prefiro levá-lo para casa e grelhá-lo para o jantar.
Então, o peixe informou:
— Se me soltares no arroio, concedo-te três desejos. Poderás pedir o que quiseres e ser-te-á concedido.
"Bem, isso já é outra coisa", pensou Lars. Acto contínuo, pegou nele pela cauda e lançou-o de novo ao arroio. Em seguida, regressou a casa com o balde cheio de água.
No entanto, levá-lo cheio custava muito mais do que se estivesse vazio. Quando chegou ao lugar onde a mãe costumava lavar a roupa, sentia-se cansado, pelo que deixou o balde em cima da tábua de lavar e escarranchou-se ao lado. Queria recompor-se um pouco do esforço efectuado.
Ocorreu-lhe de súbito que podia começar a verificar se na realidade lhe eram concedidos os três desejos prometidos pelo peixe. Assim, desejou que a tábua de lavar o conduzisse onde quisesse, por terra ou por mar, pois desse modo não tornaria a ter de se deslocar a pé. Decidiu entrar em casa com o balde e, no mesmo instante, a tábua elevou-se no ar e voou com ele e o balde até ao interior da casa da mãe.
"Isto foi muito divertido", reflectiu. "Assim, posso cavalgar por onde me apetecer." E continuou a fazê-lo, escarranchado na tábua de lavar, com o balde à frente. Quando passou diante do palácio real, viu assomada à janela a princesa, uma jovem que ria com gosto. Ao avistar aquele método de navegação aérea, irrompeu em sonoras gargalhadas e chamou as suas damas de honor, que fizeram coro com ela.
Lars Mandrião irritou-se e proferiu para consigo:
— Oxalá tenhas um rapaz, por estares a gozar-me!
Ao ver-se alvo de chacota, perdeu a vontade de continuar a cavalgar e preferiu voltar para casa, e assim fez, com o balde e tudo.
No entanto, resolveu não dizer nada à mãe. Não estava nada satisfeito com a concretização do seu primeiro desejo, convencido de que a única coisa que conseguira fora que se rissem dele. Do segundo, já nem se recordava e achou preferível reservar o terceiro para quando tivesse mais alguns anos e um pouco mais de discernimento.
E óbvio que Lars não tivera tempo de pensar no seu segundo desejo, pois pretendera apenas desoprimir-se da indignação que o assolava naquele momento, e ninguém o escutara. No entanto, para a princesa, a situação foi muito diferente, pois nove meses mais tarde dava à luz um belo e rechonchudo rapaz. O rei enfureceu-se e insistiu para que lhe revelasse o nome do pai da criança, mas ela não o podia elucidar, pois não fazia a mais remota ideia do que acontecera. Foram então enviados mensageiros aos homens mais sábios do país, os quais recomendaram que se mantivesse sigilo absoluto até que a criança completasse três anos. Chegada essa data, deviam ser convocados todos os homens do reino e colocados em fila indiana, para desfilar diante do filho da princesa, o qual teria de estar presente, com uma maçã de ouro na mão. Aquele a quem a maçã fosse entregue, seria sem dúvida o pai da criança.
O rei seguiu o conselho, pelo que, durante três anos, não se fez nem disse nada. Todavia, no final desse período, circulou pelo país a mensagem de que todos os homens, independentemente da sua condição, deviam comparecer no palácio real num dia determinado. Quando essa data chegou, realizou-se urna reunião numerosíssima. Os homens foram dispostos em linha e desfilaram diante da criança, que tinha a maçã de ouro na mão. Por fim, passou o último, e a maçã continuava em seu poder.
Em face disso, o rei mandou anunciar que, se algum homem ficara em casa, devia apresentar-se imediatamente, sob pena de perder a vida. Alguém comunicou que conhecia uma mulher de posses modestas que tinha em casa um filho muito madraço que não comparecera, mas isso talvez não significasse nada de especial. Não obstante, o rei ordenou que se apresentasse sem demora. Enviou um mensageiro e Lars Mandrião teve de se mover depressa como nunca fizera em toda a sua vida. Quando a criança o viu, entregou-lhe a maçã de ouro sem hesitar.
O rei, que já estava furioso, irritou-se ainda mais quando viu a espécie de indivíduo que era o pai do seu neto. Assim, ordenou à princesa que abandonasse o reino imediatamente e não voltasse a aparecer-lhe na frente, porque não queria saber mais dela. Quis que levasse também o filho e que Lars Mandrião os acompanhasse e cuidasse do seu sustento.
Por conseguinte, ela não teve outro remédio senão pegar na criança e partir com Lars, o qual se viu obrigado a aceitar ambos. Fê-la sentar, com o filho, na tábua de lavar da mãe, e abandonou o reino. Acto contínuo, a tábua elevou-se no ar e afastou-se com os três.
Quando viu que cavalgavam daquele modo estranho, a princesa recordou-se de ter visto Lars numa ocasião, embora não conseguisse explicar o mistério de corno pudera engravidar dele, pelo que lhe solicitou que a elucidasse. Lars contou-lhe então o episódio dos três desejos que lhe haviam sido concedidos. O primeiro fora aquela montada tão especial de que ela rira com gosto e que agora resultava extremamente conveniente.
O segundo foram as palavras que pronunciara com indignação ao vê-la rir-se dele, e daí o aparecimento da criança.
— Nesse caso, ainda falta o terceiro — lembrou a princesa.
Lars concordou, mas esclareceu que o reservava para quando tivesse mais alguns anos de idade e um maior grau de sensatez.
— Penso que chegou o momento oportuno, se me deixares exprimir o desejo — declarou ela.
Apressou-se a encher o avental de pequenas pedras e, em seguida, disse a Lars que, como terceiro desejo, pedisse que lhe concedessem tantos quantos as pedras que recolhera no avental. Ele assim fez, pelo que lhes restaram tantos desejos que já não tinham de recear que se esgotassem.
— Concordaram que a princesa seria a primeira a formular o desejo seguinte e depois o faria ele. E para que se concretizasse, ajudar-se-iam mutuamente. Primeiro, desejariam ter um palácio mais sumptuoso que o do rei, com um belo jardim em volta, também muito maior e mais formoso que o do pai. A seguir, quiseram tudo o necessário para dispor de urna mesa verdadeiramente bem servida. Por fim, formularam a vontade de que o monarca e toda a sua corte comparecessem ao banquete que tinham preparado.
Tudo se desenrolou em conformidade com o previsto. O rei chegou com toda a corte e ficou embasbacado quando viu tanto luxo e magnificência. Reconheceu que não devia menosprezar o genro, um homem sem dúvida muito diferente daquele que conhecera anteriormente. E estabeleceu-se de imediato uma profunda amizade entre ambos.
Quando se levantaram da mesa, a princesa e o marido desejaram que toda a baixela e talheres de prata utilizados no banquete fossem parar aos bolsos do rei, após o que a princesa disse:
— Parece incrível que possa haver ladrões entre nós, mas é evidente que acaba de desaparecer toda a baixela, assim como os talheres de prata.
O monarca concordou que era vergonhoso que semelhantes pessoas pudessem encontrar-se entre o seu séquito e ordenou que todos os presentes fossem revistados. Assim se fez, mas não se encontrou nada. Por fim, foi a sua vez e extraíram-lhe dos bolsos os objectos desaparecidos.
O rei ficou absolutamente estupefacto e envergonhado e disse que não compreendia como aquilo tinha podido acontecer.
A princesa fez então uso da palavra:
— Eu também não compreendia como tinha engravidado. Ambas as coisas tiveram a mesma causa: os desejos. Mas agora estou muito feliz e satisfeita com o meu Lars Mandrião e não ambiciono outro homem na minha vida.
O rei reconheceu este último como seu verdadeiro genro e nomeou-o herdeiro do reino e de toda a sua magnificência. No entanto, muitos fidalgos encararam mal a decisão, revoltados por, um dia, um mendigo vir a ser o seu monarca. Por esse motivo, a princesa e o príncipe Lars desejaram que a esses crescesse tanto o nariz, que aguentassem o seu peso com dificuldade. O desejo cumpriu-se e, quando os distintos senhores do banquete chegaram a casa e se prepararam para descer das suas carruagens, tinham o apêndice nasal tão comprido que tropeçaram nele, caíram e fracturaram uma perna.
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