cont_fra_2.gif (3K)

< Voltar à página do índice

Enriquete, "o do Topete"

Era uma vez uma rainha que tinha um filho tão feio e disforme, que se chegava a pôr em dúvida que fosse um ser humano. Uma fada que se encontrava presente no seu nascimento garantiu que seria amado, pois possuiria um engenho acima do vulgar. E até acrescentou que, com o presente que lhe fora levar, conseguiria que a pessoa que mais amasse fosse tão engenhosa como ele.
Tudo aquilo consolou um pouco a desolada rainha, que estava muito acabrunhada por ter trazido ao mundo semelhante monstruosidade. No entanto, com efeito, quando o filho começou a falar, já proferia milhares de coisas muito bem ditas e, em tudo o que fazia, revelava tanto engenho que toda a gente ficava fascinada. Esquecia-me de referir que viera ao mundo com um pequeno topete de cabelo em metade da cabeça, pelo que lhe chamavam Enriquete, o do Topete.
Transcorridos sete ou oito anos, a rainha de um país vizinho teve duas meninas. A primeira que veio ao mundo era mais bela que o Sol, pelo que a mãe se alegrou tanto que receava que uma euforia tão pronunciada lhe fosse prejudicial. A fada que assistira ao nascimento do pequeno Enriquete também se achava presente no da princesa e, para atenuar a excitação da rainha, esclareceu que a jovem não teria nada de engenhosa e a beleza que possuía seria contrabalançada pela imbecilidade. A rainha ficou profundamente abalada e ainda mais quando deu à luz a segunda filha, minutos mais tarde, a qual era extremamente feia.
- Não te apoquentes muito - recomendou-lhe, todavia, a fada. - Possuirá tanto engenho, que a falta de beleza passará totalmente despercebida.
- Deus o queira - replicou a rainha. - Mas não haverá alguma maneira de transmitir um pouco dessa inteligência à irmã?
- Infelizmente, não posso fazer nada por ela, em termos de inteligência - admitiu a fada. - Só tenho poder sobre a beleza. E como não há nada que eu não tentasse para te comprazer, concedo à menina o dom de tornar bela a pessoa que amar.
À medida que as princesas cresciam, os seus encantos aumentavam de tal modo que ninguém falava de outra coisa que não fosse a beleza da mais velha e o engenho da mais jovem. E certo que, com a idade, os seus defeitos também se acentuavam, pelo que cada dia que passava uma era mais feia e a outra mais estúpida. Quando faziam uma pergunta a esta última, ou ficava absolutamente calada ou respondia com insensatez. A dureza mental ia ao ponto de não ser capaz de colocar quatro chávenas num armário sem partir pelo menos uma, nem beber um copo de água sem verter metade no vestido.
Embora a beleza constituísse uma grande vantagem, a que costumava ter mais êxito na sociedade era a mais jovem. A princípio, todos se aproximavam da mais velha para a contemplar e admirar, mas não tardavam a reunir-se em torno da filha mais nova para escutar as mil coisas interessantes que revelava. E resultava surpreendente que, ao cabo de um quarto de hora, já ninguém se conservasse junto da mais velha, para acudirem todos ao círculo da irmã. Não obstante, como a outra tinha a consciência da sua estupidez, renunciaria sem hesitar a toda a beleza para possuir o engenho da mais jovem. E, por sagaz que a rainha fosse, acontecia com frequência lançar-lhe à cara tudo o que era, de tal modo que a infortunada princesa receava morrer de mágoa e vergonha.
Um belo dia em que se refugiara no bosque para lamentar a sua infelicidade, viu chegar um homem de pequena estatura, muito feio, embora trajado de forma irrepreensível. Era o jovem príncipe Enriquete, o do Topete, o qual, ao ver um retrato da moça que circulava por todo o mundo, se enamorara dela. Por conseguinte, abandonara o seu reino para a conhecer pessoalmente. E ficou tão entusiasmado ao encontrar-se com ela a sós, que começou a falar?lhe com toda a cortesia e o maior respeito. Em seguida, apercebeu-se de que estava assaz melancólica e declarou:
- Não compreendo por que razão uma pessoa tão linda está tão triste como aparentas, pois, apesar de me poder vangloriar de ter visto muitas jovens deslumbrantes, reconheço que nenhuma se pode comparar contigo.
- Estás no teu pleno direito de falar assim - limitou-se a princesa a replicar.
- A beleza - prosseguiu Enriquete, o do Topete, - é uma qualidade tão elevada, que pode substituir tudo o resto. Não vislumbro, pois, o que pode afligir quem a possui.
- Pois eu preferia ser tão feia como tu e possuir inteligência em vez de beleza e uma mentalidade granítica.
- Podes acreditar no seguinte: não há sinal de inteligência mais claro do que supor que não se tem nenhuma.
- Isso não sei. Mas não tenho a mínima dúvida da minha estupidez, e daí a mágoa que me consome.
- Se é só isso, posso pôr termo à tua angústia com a maior facilidade.
- Como?
- Disponho do poder de conceder o mesmo engenho que possuo à pessoa que mais amar. E como essa pessoa és tu, só depende de ti quereres possuir tanto como é possível, se e quando casares comigo.
A princesa ficou tão desconcertada, que não soube o que responder.
- Vejo que a proposta te embaraça, e não me surpreende acrescentou ele. - Assim, é com todo o gosto que te concedo um ano para tomares uma decisão.
Ela tinha tão pouco discernimento e, ao mesmo tempo, tanta vontade de o possuir, que julgou que o final desse período nunca chegaria, pelo que aceitou a proposta. E, no mesmo instante em que prometeu a Enriquete, o do Topete, que o desposaria dentro de um ano, sentiu-se completamente diferente, como nunca lhe sucedera até então. Agora, tornava-se-lhe incrivelmente fácil dizer tudo o que pretendia e com naturalidade, elegância e desenvoltura. A partir daquele instante, iniciou uma conversa galante e cortês, em que se mostrou tão desembaraçada, que pensava que lhe incutira mais engenho do que ele próprio conservara.
Quando a princesa regressou ao palácio, toda a corte deu tratos à imaginação para tentar determinar a repentina e extraordinária mudança, pois agora ela, ao contrário de anteriormente, só abria os lábios para se exprimir com a maior sensatez. A única pessoa que não se mostrou muito comprazida foi a irmã mais jovem, a qual, sem a vantagem da inteligência, se sentia como uma macaca hedionda em comparação com ela.
O rei acompanhava com satisfação os progressos da filha e procurava-a com frequência nos seus aposentos para se aconselhar. A transformação tornou-se do conhecimento geral, o que atraiu todos os príncipes jovens dos remos vizinhos, que se esforçavam por conseguir os seus favores e a desejavam para esposa. No entanto, ela não descortinava ninguém possuidor de engenho suficiente, pelo que recebeu todos, mas evitou comprometer-se. Surgiu então um tão poderoso, rico, inteligente e bem-parecido, que não pôde evitar amá-lo. Ao inteirar-se, o pai assegurou-lhe que podia escolher livremente quem quisesse para marido e bastava comunicar-lho. Contudo, quanto mais inteligente uma pessoa é mais penoso se lhe torna tomar uma decisão, o que a levou a pedir-lhe a concessão de algum tempo para reflectir.
Por mera casualidade, foi passear no mesmo bosque em que se encontrara com Enriquete, o do Topete, para ponderar o assunto mais calmamente. Quando se achava imersa em cogitações, sentiu debaixo dos pés um ruído, como de várias pessoas que se movessem de um lado para o outro, muito atarefadas. Apurou os ouvidos e detectou uma voz:
- Traz aquela panela!
E outra:
- Deita mais lenha no lume!
No momento imediato, o solo abriu-se e ela viu a seus pés uma cozinha enorme cheia de cozinheiros, ajudantes e todo o restante pessoal necessário, que preparavam um magnífico banquete. Emergiram de lá vinte ou trinta cozinheiros, que se sentaram numa clareira do bosque, em torno de uma longa mesa. Munidos de facas de cozinha e com um ramo de amaranto atrás da orelha, puseram?se a trabalhar ao ritmo de uma canção harmoniosa.
Surpreendida com o espectáculo, a princesa perguntou-lhes para quem trabalhavam.
- Para o príncipe Enriquete, o do Topete - respondeu um deles, que parecia ser o chefe de cozinha. - Casa amanhã.
A princesa ficou ainda mais perplexa, mas, de repente, recordou-se que fazia um ano que acedera casar com Enriquete, o do Topete. Quando se comprometera, ainda era pateta, porém a inteligência recebida dele levara-a a esquecer todos os actos e palavras insensatas anteriores.
Ainda não avançara trinta passos, quando se lhe deparou o próprio Enriquete, o do Topete, luxuosa e elegantemente trajado como um príncipe na iminência de contrair matrimónio.
- Como vês, cumpro escrupulosamente a minha palavra -declarou ele. - Não duvido, pois, que procederás do mesmo modo, concedendo-me a mão, para me tornares o homem mais feliz do mundo.
- Para ser franca - replicou ela -, ainda não tomei uma decisão a esse respeito, mas não creio que possa fazer jamais o que desejas.
- Surpreendes-me.
- Acredito. Na verdade, se estivesse perante um obtuso, um homem desprovido de inteligência, ficaria em apuros, pois alguém assim afirmaria que uma princesa deve cumprir a palavra dada e diria: "Tens de casar comigo, porque o prometeste." Mas como estou a falar com uma pessoa do mundo, engenhosa, tenho a certeza de que serás razoável. Como sabes, quando eu não passava de uma pateta, tinha grandes dificuldades em decidir se devia ou não casar. E agora que possuo o engenho suficiente que me deste para que tome responsavelmente uma decisão tão complexa, não o posso fazer. Se pretendias unir o teu destino ao meu, cometeste um erro ao permitir-me que veja as coisas com maior clareza que dantes.
- Se um homem sem engenho, como referes acertadamente, tomasse a liberdade de te atirar à cara que faltas à tua palavra, porque não farei eu o mesmo se se encontra em jogo toda a felicidade da minha vida? E porventura razoável que os homens possuidores de engenho estejam em pior situação que os insensatos? Podes tu, como mulher de engenho, fazer semelhante afirmação? Mas passemos ao âmago da questão. Existe em mim, à parte a fealdade, alguma coisa que te repugna? Não te sentes satisfeita com a minha linhagem, o meu engenho, o meu carácter e os meus hábitos?
- Pelo contrário. Aprecio todas as características que acabas de mencionar.
- Nesse caso - volveu Enriquete, o do Topete -, sou muito feliz, pois podes tornar-me no ser mais belo do mundo.
- Como assim?
- Isso acontecerá se me amares o suficiente para o desejar, pois, para que não subsistam dúvidas, deves saber que a mesma fada que no dia do nascimento me concedeu o dom de tornar engenhosa a eleita do meu coração, te atribuiu o poder de tomar linda a pessoa que amasses e à qual quisesses conceder essa graça.
- Sendo assim - proferiu a princesa, desejo de todo o coração que sejas o príncipe mais belo e adorável do mundo, e concedo-te o dom melhor possível.
Mal acabou de pronunciar estas palavras, o príncipe Enriquete, o do Topete, transformou-se no homem mais bem-parecido e adorável jamais visto. Alguns garantem que não foi o sortilégio da fada que operou a metamorfose, mas apenas o amor. Asseveram igualmente que a princesa tomou em consideração a constância do seu apaixonado, a descrição e todas as boas qualidades da sua alma e espírito, razões pelas quais deixou de ver a deformação do corpo e a fealdade do rosto. Diz-se que a corcova não lhe parecia maior que as costas robustas de outro homem e, embora notasse que coxeava, apenas descortinava uma leve tendência para se inclinar para um lado. Consta que os olhos piscos lhe lembravam os mais brilhantes do mundo, a irregularidade das feições um sinal de amor apaixonado e, finalmente, o nariz avermelhado continha algo de marcial e heróico.
Seja como for, o caso é que ela prometeu ali mesmo desposá?lo, desde que obtivesse o consentimento do real progenitor. Quando este viu o afecto que a filha dispensava a Enriquete, o do Topete, o qual, no seu entender, era um príncipe sábio e engenhoso, aceitou-o de bom grado para genro. O casamento efectuou-se no dia seguinte, como Enriquete, o do Topete, previra e em conformidade com as instruções que transmitira desde longa data.


Moral da história


O que está escrito demonstra
não a verdade, mas um conto.
Aquele que ama acha sempre
que o ser amado é perfeito.

< Voltar à página do índice

A princesa do bosque encantado

Era uma vez um rei, pai de três jovens príncipes, todos em idade de casar. Um dia, os nobres, reunidos na corte, perguntaram-lhe se já havia pensado nisso.
- Digam-me quem é a princesa mais bela e mais rica que conhecem e enviarei um deles para lhe pedir a mão - foi a resposta pronta.
Eles declararam que era a princesa do bosque encantado.
- Também não me ocorreria outra melhor, mas vai ser difícil. Muitos outros candidatos tentaram chegar até ela. Internaram-se no bosque, mas nenhum regressou.
- O príncipe tem de passar pela Pousada dos Quatro Gorriões, onde lhe explicarão como deve ultrapassar o primeiro obstáculo.
Depois de se apetrechar devidamente, o príncipe mais velho pôs-se imediatamente a caminho. Quando chegou à Pousada dos Quatro Gorriões, disseram-lhe que, para penetrar no bosque, tinha de matar a serpente de guarda à entrada.
Ao vê-lo aproximar, esta ergueu-se e ele tentou abatê-la, mas a espada limitou-se a roçá-la e ela indicou:
- Continua!
O príncipe internou-se num bosque magnífico, cheio de árvores esplêndidas, povoado por aves de todas as cores e o solo coberto de flores odoríferas. Não tardou a sentir-se atraído por uma bela música de violinos e sanfonas, acompanhados por um coro. Jovens belos que dançavam convidaram-no a reunir-se-lhes e ele não hesitou em aceder.
Sucederam-se os dias sem que o rei tivesse notícias do filho mais velho. Por fim, o do meio anunciou-lhe:
- Também quero pôr-me a caminho.
Tão-pouco conseguiu matar a serpente, limitando-se a produzir
-lhe pouco mais do que um arranhão com a espada, após o que ela indicou:
- Continua!
Quando chegou ao local onde se encontravam os dançarmos, o príncipe deteve-se, surpreendido com aquela música e coros de pessoas que o convidavam a reunir-se-lhes. Reconheceu então o irmão e, tal como este, não seguiu em frente.
Como não chegavam notícias dos dois príncipes à corte do rei, o mais jovem comunicou ao pai:
- Agora, quero partir eu.
O monarca não desejava consentir, porém, o filho pegou na espada do avô, mandou-a abençoar e pôs-se a caminho.
Desta vez, a serpente recebeu um golpe mortal. Todavia, no mesmo instante, o príncipe viu que, no lugar do réptil, havia agora uma pequena e admirável raposa à qual faltava uma pata, como se lha tivessem cortado.
- Vem comigo, príncipe - convidou-o. - Segue-me, mas procura não te deteres com os dançarmos.
Quando ouviu a música, ele voltou-se para o outro lado e prosseguiu o seu caminho, apesar de ter reconhecido as vozes dos seus irmãos, que o chamavam pelo nome. Quando os acordes deixaram de se ouvir, viu que a pequena e admirável raposa já só se apoiava às duas patas que lhe restavam. Apesar disso, ela indicou:
- Vem, vem, meu pequeno príncipe! Verás numerosos pássaros, cada um numa bela gaiola de ouro. Alguns cantam maravilhosamente bem e possuem plumagem deslumbrante. Não te detenhas junto deles. No entanto, quando vires uma gaiola com um pássaro de olhos tristes e penas eriçadas, apodera-te dela.
E, com efeito, o príncipe apoderou-se da gaiola do pássaro de penas eriçadas. No mesmo momento, deu-se conta de que a pequena e preciosa raposa caminhava sobre três patas, pois recuperara uma das perdidas.
- Agora, continua com a tua gaiola e, quando chegares ao palácio, apodera-te de uma mula que um gigante deixou aí a pastar - recomendou ela.
O gigante lamentou-se e rogou ao príncipe que não se apoderasse da mula, mas o jovem príncipe não cedeu aos seus pedidos insistentes, nem às ameaças. Desta vez, a pequena raposa, que recuperara a quarta pata, indicou-lhe:
- Ata a mula à portas do palácio, entra e pergunta ao rei se te concede a mão da filha.
O monarca respondeu que lha concedia com o maior prazer. No mesmo momento, o pássaro de penas eriçadas transformou-se na princesa mais linda do mundo, a qual aceitou em se tornar esposa do príncipe e pediu-lhe que a levasse imediatamente à corte do pai. A pequena raposa, que aguardava à porta, recomendou ao príncipe:
- Montem ambos na mula e, se se aproximar algum perigo, chamem-me com as seguintes palavras: "Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!"
Quando o príncipe passou junto dos dançarinos, os irmãos voltaram a reconhecê-lo. A noite, ele e a princesa desmontaram da mula para descansar. De repente, surgiram dois homens jovens, um dos quais se apoderou da princesa e o outro da mula. E enquanto um levava a princesa sequestrada, o outro - o seu irmão do meio - atirou o príncipe a um poço que havia muito perto dali.
O infortunado príncipe estava prestes a afogar-se, quando se lembrou da raposa e gritou:
- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!
No instante imediato, ela apareceu no topo do poço e indicou:
- Agarra-te à minha cauda!
Quando ele se encontrava quase no cimo, a cauda soltou-se e voltou a cair na água.
- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!
Ela voltou a aparecer e desta vez conseguiu
retirá-lo do poço. Em seguida, informou:
- Regressa à cidade onde vive o rei, teu pai. Pelo caminho, encontrarás uma ferradura que a mula perdeu. Guarda-a. Quando chegares à cidade, veste-te de ferrador e, depois de todos os outros terem tentado ferrar a mula, oferece-te para o fazer. A seguir, dá-te a conhecer ao teu pai e explica-lhe que foste tu que conseguiste chegar até à princesa do bosque encantado.
Os ferradores foram passando um após outro, mas nenhum conseguiu aproximar-se da mula, que não parava de escoicear, na presença do rei, com os seus dois filhos. Finalmente, apresentou-se um jovem ferreiro, que se acercou dela, levantou-lhe a pata e puxou de uma ferradura, que se lhe ajustou perfeitamente. O príncipe deu-se então a conhecer e, cheia de alegria, a princesa abraçou-o. O monarca determinou que o casamento se celebrasse imediatamente. Jamais se tinha assistido a uma boda tão faustosa. E hoje, o príncipe e a sua princesa são esposos jovens e felizes e trouxeram ao mundo vários principezinhos.

< Voltar à página do índice

O Homem de Ferro

Era uma vez um velho soldado, chamado La Ramée, que estava sempre embriagado e mascava tabaco de manhã à noite. Um dia em que o seu coronel o admoestou, puxou do sabre e matou-o. No instante imediato, chegaram o capitão e o cabo para conduzir La Ramée ao comissariado, onde lhe comunicaram que, no dia seguinte, seria presente a um conselho de guerra.
- Cabo - disse o detido -, esqueci-me da mochila em cima da mesa do meu quarto. E uma coisa que não me costuma acontecer, pois tenho sempre muito cuidado com aquilo que me pertence. Posso ir buscá-la?
- Pois sim, vai.
La Ramée pegou na mochila, que estava cheia de pão, atirou-a à rua e depois saltou pela janela, recolheu-a e pôs-se em fuga, rumo a Inglaterra, onde supunha que se encontraria em segurança.
Um dia em que atravessava um bosque, avistou uma choça miserável e, como morria de fome, entrou e deparou-se-lhe uma mulher idosa que gramava cânhamo, à qual perguntou se lhe podia dar algo de comer e uma cama para pernoitar. Ela serviu-lhe um guisado à base de batatas e indicou um canto em que estavam amontoados resíduos de cânhamo, onde, à falta de um leito, poderia dormir.
Na manhã seguinte, La Ramée dispunha-se a reatar a marcha, quando a velha lhe disse:
- Sei uma coisa que pode contribuir para que tanto tu como eu façamos fortuna. Em determinado lugar, há um castelo ao qual te explicarei como deves chegar. Tens de te encaminhar para lá e tentar entrar. No primeiro aposento, verás ouro e prata em cima de uma mesa; no segundo, leões; no terceiro, serpentes; no quarto, dragões; no quinto, Ossos; e no sexto, três leopardos. Tens de atravessar todos rapidamente e sem te assustares. Quando entrares no sétimo aposento, verás um homem de ferro sentado numa bigorna de bronze e, atrás dele, uma vela acesa. Avança directamente para esta última, apaga-a e guarda-a na algibeira. Depois, tens de cruzar um pátio em que se encontra um pelotão de guarda. Os soldados olharão para ti, mas não voltes os olhos para eles, conservando-os fixos no chão. Deves tomar a preocupação de proceder como te indico, sob pena de te perseguir a má sorte.
La Ramée seguiu o caminho referido e não tardou a chegar ao castelo. No primeiro aposento, avistou em cima de uma mesa um montão de ouro e prata; no segundo, leões; no terceiro, serpentes; no quarto dragões; no quinto, ossos; no sexto, três leopardos; e, quando chegou finalmente ao sétimo, um homem de ferro e, atrás dele, uma vela acesa. Ele avançou directamente para esta última, apagou-a e guardou-a na algibeira. Depois, com os olhos fixos no chão, atravessou um largo pátio onde se encontrava um pelotão de guarda. Quando abandonou o castelo, lembrou-se de acender a vela. No momento seguinte, o homem de ferro, que era o servo da vela, apareceu na sua frente e perguntou:
- Que desejas, meu amo?
- Dá-me dinheiro - replicou La Ramée. - Há muito tempo que anseio por possuir uma fortuna.
O homem de ferro encheu-lhe a mochila de dinheiro e desapareceu.
La Ramée pôs-se então a caminho em direcção à capital do reino. Antes de lá chegar, porém, surgiu a velha bruxa, que lhe pediu a vela. Primeiro, ele disse que a tinha perdido, mas depois entregou-lhe uma vela vulgar.
- Não é essa que pretendo - retorquiu ela. - Entrega-me imediatamente a que te mandei buscar.
Ao ver que a ameaçava, La Ramée lançou-se-lhe em cima e matou-a.
Quando chegou à capital, hospedou-se no hotel dos príncipes, onde pagava a diária de cinquenta francos. E, como não se privava de nada, a mochila não tardou a ficar vazia e ele a dever o alojamento de dois ou três dias. Reconheceu que se achava em apuros, sobretudo porque a proprietária do hotel não parava de lhe exigir o pagamento da dívida.
Depois de esquadrinhar mais uma vez a mochila sem descobrir um único cêntimo, introduziu a mão na algibeira, esperançado em encontrar uma ou duas moedas, e os dedos rodearam a vela.
- Que imbecil sou! - exclamou. - Como é possível que me esquecesse dela?
Acendeu-a rapidamente, e o homem de ferro surgiu com prontidão.
- Que desejas, meu amo?
- Deixaste-me sem um chavo, patife!
- Ignorava-o, amo. Só me posso inteirar por meio da vela.
- Bem, então dá-me dinheiro!
O homem de ferro deu mais dinheiro a La Ramée numa quantia superior à anterior. Enquanto ele se apressava a contar as moedas e amontoá-las em cima da mesa, uma serviçal espreitou pelo buraco da fechadura e correu a informar a ama da fortuna do hóspede, pelo que não o devia tratar como um indigente. Assim, quando La Ramée a procurou para pagar o que lhe devia, ela recebeu-o com uma expressão cordial.
Dois ou três dias mais tarde, ele voltou a acender a vela. Como de costume, o homem de ferro apresentou-se com prontidão.
- Que desejas, meu amo?
- Que a princesa, filha do rei de Inglaterra, passe a noite no meu quarto.
As coisas desenrolaram-se como ele desejava. A noite, a princesa encontrava-se no quarto do hotel. No entanto, quando La Ramée lhe falou de casamento, nem quis considerar a possibilidade. Passou a noite encolhida a um canto e, de manhã, ele ordenou ao servo da vela que a restituísse ao palácio.
Ora, ela tinha o hábito de ir todas as manhãs beijar o pai, e, ao ver que não aparecia nesse dia, o rei ficou surpreendido. Por fim, quando, passadas várias horas, surgiu, exclamou:
- Que noite tão triste passei, pai!
E explicou o sucedido. O monarca, profundamente impressionado e receoso, apressou-se a mandar chamar uma fada, a fim de o aconselhar.
- O assunto tem que ver com algo de mais poderoso que eu - declarou ela. - Só me ocorre uma ideia: dá à princesa um saco de trigo, com a recomendação de que o verta na casa onde passar a noite. Assim, poderá localizar-se.
Entretanto, La Ramée mudou de hotel e, um dia, acendeu a vela e disse ao homem de ferro:
- Quero que a princesa venha ao meu quarto, esta noite.
- Traíram-nos, amo - informou o outro. - No entanto, farei o que me ordenas.
Depois de cumprir a ordem, foi buscar todo o trigo que havia nas padarias e espalhou-o por todas as casas, pelo que, na manhã seguinte, não houve a menor possibilidade de determinar onde a princesa passara a noite.
Em face disso, a fada aconselhou o rei a entregar à filha um odre cheio de sangue, que ela deveria perfurar na casa em que pernoitasse.
La Ramée tornou a ordenar ao servo da vela que fosse buscar a princesa.
- Traíram-nos, amo - informou o homem de ferro. - No entanto, farei o que me ordenas.
Entrou nas cavalariças do rei, matou todos os cavalos de guerra e todos os bois e espalhou o sangue por todos os lados. De manhã, todas as ruas e todas as casas se achavam repletas de sangue, pelo que o rei não pôde descobrir nada. Por conseguinte, consultou mais uma vez a fada, que recomendou:
- Deves colocar guardas perto da princesa.
A noite, La Ramée acendeu a vela, e o homem de ferro fez a sua aparição, para anunciar:
- Fomos traídos, amo. Há guardas junto da princesa. Não posso fazer nada contra eles.
La Ramée quis ir ele próprio, mas os guardas detiveram-no, acorrentaram-no e encerraram?no num calabouço escuro e húmido.
Chorava e lamentava-se atrás das grades da janela da cela, quando viu passar na rua um velho soldado francês, seu antigo companheiro de armas, e chamou-o.
- Essa, agora! - exclamou o homem. - Não és, porventura, La Ramée?
- Sim, sou eu. Fazias-me um grande favor se fosses ao meu hotel e trouxesses o acendedor, o tabaco e a vela, que deixei escondida debaixo do travesseiro.
O soldado pediu autorização ao sargento da guarda e apresentou-se no hotel, da parte de La Ramée.
- Ah, vens mandado por esse malandro? - vociferou o proprietário. - Pega nos trastes dele e diz-lhe que não volte a pôr cá os pés.
Quando recebeu os objectos pedidos, La Ramée utilizou o acendedor para acender a vela. No momento imediato, surgiu o homem de ferro, que lhe retirou as correntes.
- Miserável! - rugiu La Ramée. - Como pudeste deixar-me abandonado neste calabouço?
- Eu não sabia de nada, amo - replicou o homem de ferro.
- Só me posso inteirar por meio da vela.
- Bem, tira-me daqui!
Libertou imediatamente La Ramée e deu-lhe todo o ouro e prata que quis, após o que este o mandou transportar a uma alta montanha próxima da capital e instalar nela uma bateria de duzentos canhões. Por último, declarou guerra ao rei de Inglaterra, o qual enviou cem homens para o enfrentar.
O exército de La Ramée era formado por cinco homens de ferro. O combate não se prolongou muito - todos os enviados do rei morreram, salvo o tambor, que tratou de o prevenir do resultado da confrontação. La Ramée instou o monarca a render-se, porém este respondeu que não lhe metia medo e enviou mais quatrocentos homens ao seu encontro, os quais também morreram.
De súbito, La Ramée viu passar um cego com a sua mulher, o qual tinha um decrépito violino que tocava de forma deplorável.
- Que violino tão bonito! - exclamou La Ramée.
- Não te rias dele - replicou o cego. - Tem poderes sobre os vivos e os mortos.
- Vende-mo.
- Não posso. Ajuda-me a ganhar a vida.
- Desfazias-te dele por dez mil francos?
- Com o maior prazer.
La Ramée contou os dez mil francos e ficou com o violino. Em seguida, enviou um mensageiro comunicar ao rei de Inglaterra que, se não lhe entregasse a filha para casar com ele, a guerra prosseguiria.
E o mensageiro salientou:
- Como soldados, há homens de três metros de altura, armados de sabres de dois e meio de comprimento.
O monarca declarou então que estava disposto a entabular negociações. Com efeito, passado pouco tempo, apresentou-se perante La Ramée com a filha.
- Concedo-te duas horas para reflectir - anunciou este último. - Se não aceitares as minhas condições, bombardeio o castelo e toda a cidade.
O rei ponderou a situação por uns momentos e acabou por admitir:
- Estaria disposto a assinar a paz, se não tivessem morrido tantos homens.
- Nada mais fácil do que ressuscitá-los, Majestade - replicou La Ramée.
Pegou no violino e, à primeira nota, os soldados dispersos no chão começaram a mover-se, uns à procura dos braços, outros das pernas e outros ainda da cabeça.
Ao presenciar a insólita cena, o monarca declarou sentir-se satisfeito e autorizou o casamento. Como principiava a envelhecer, aposentou-se e La Ramée substituiu-o como rei de Inglaterra. Assim, o rei de França teve de lhe perdoar a deserção e todas as outras proezas.

< Voltar à página do índice

Da pega e as suas crias

Era uma vez uma pega que levava as suas crias aos campos para lhes ensinar a vida e o modo de conseguir alimentos. Elas, todavia, que estavam muito mimadas, queriam voltar para o ninho, pois pensavam que a mãe tinha de continuar a dar-lhes de comer no bico. Esta última, no entanto, achava que já se encontravam em condições de voar a toda a parte, pelo que desejava obrigá-las, de uma vez por todas, a procurar directamente a alimentação, instruindo-as da seguinte maneira:
- Saiam a voar aos campos, pois já são suficientemente grandes para cuidarem de si. A minha mãe soltou-me aos meus recursos muito antes.
- Mas que podemos fazer? - perguntaram. - Os caçadores abatem-nos imediatamente.
- De modo algum - insistiu a pega. - Precisam de tempo para visar o alvo. Quando virem que apontam o arcabuz e o apontam à face, fujam.
- Muito bem, assim faremos - acederam. - Mas, e se um deles pega numa pedra e no-la atira? Para isso, não é necessário apontar primeiro.
- Em todo o caso, verão que se agacha para pegar na pedra.
- E se, por casualidade, já a tiver na mão, pronta para a atirar?
- Se são tão sensatos para pensar nisso - decidiu a mãe -, tomem as precauções que lhes parecerem indispensáveis.
Com estas palavras, levantou voo e abandonou as crias.
Se não gostaram da história, não me vou pôr a chorar.

< Voltar à página do índice

O rouxinol e o licranço


Era uma vez um rouxinol e um licranço que só tinham um olho cada um e viviam desde longa data na mesma casa em paz e harmonia. Um dia, porém, o rouxinol foi convidado para um casamento e comunicou ao licranço:
- Convidaram-me para uma boda e não gostava de comparecer apenas com um olho. Sê camarada e empresta-me o teu. Devolvo-to amanhã.
E o licranço comprazeu-o.
Mas, no dia seguinte, quando regressou a casa, o rouxinol estava tão satisfeito por ter dois olhos na cabeça e poder contemplar todos os lados, que não quis devolver o que lhe fora emprestado. Em face disso, o licranço jurou vingar-se dele e dos filhos dos seus filhos.
- Então, experimenta! - desafiou o rouxinol, que se pôs a cantar:

Construirei o meu ninho naquela árvore,
tão, tão, tão alto,
Que nunca conseguirás alcançá-lo.

Desde então, todos os rouxinóis têm dois olhos e os licranços nenhum. No entanto, onde ele constrói o ninho, vive também, entre os ramos, um licranço, que consegue sempre trepar até lá, perfurar os ovos do inimigo e absorver o conteúdo.

< Voltar à página do índice

O pedaço de galo

Havia, uma vez, em La Chassoule, duas mulheres que eram irmãs - uma chamada Catherine e a outra, a mais jovem, Marie. O seu único bem consistia num galo que deviam compartilhar. A isso se resumia a herança deixada pelos finados pais, e cada uma ficou com metade.
- Comerei o meu pedaço - disse Catherine. - Servirá para cozinhar um excelente estufado, acompanhado por um copo de leite e, no final, castanhas assadas.
- Eu não - replicou Marie. - Guardarei o meu pedaço; que ele faça o que quiser com a ajuda de Deus e do bondoso São Martinho.
O conto prossegue revelando-nos que essa mulher, possuidora de bom coração, recebeu uma excelente recompensa pela sua louvável acção. Na verdade, o seu pedaço de galo soube mostrar-se grato, como a seguir veremos.
Um dia, quando esgaravatava, no quintal, em busca de uma toupeira, o pedaço de galo encontrou uma bolsa cheia de luíses de ouro, que se apressou a entregar à dona. Pelo caminho, porém, cruzou-se com um malvado, que lha arrancou do bico e guardou na algibeira.
- Devolve-ma, ou temos luta - advertiu o pedaço de galo.
- Faz o que quiseres - retorquiu o ladrão. - Mas se pretendes lutar comigo, primeiro terás de me apanhar, pois sigo para casa, em Paris, e levo a bolsa.
- Pois bem, lutaremos em Paris.
O pedaço de galo foi comunicar a sua intenção à dona, que lhe perguntou:
- Para que queres ir, se não conseguirás nada?
- Quero a minha bolsa, e tê-la-ei - foi a resposta firme.
E partiu imediatamente. Pelo caminho, cruzou-se com o lobo, que lhe perguntou:
- Aonde vais, pedaço de galo?
- Aonde vou? Lutar em Paris. Acompanha-me, se queres.
- Que dizes, pobre diabo? Com as minhas quatro patas, chegaria muito antes que ti, pois andas ao pé-coxinho, por assim dizer.
- O primeiro a chegar espera o outro - desafiou o pedaço de galo.
O lobo tomou imediatamente a dianteira.
Um pouco mais tarde, o pedaço de galo cruzou-se com a raposa, a qual lhe fez a mesma pergunta e obteve idêntica resposta e convite.
- Não podes andar tão depressa como eu - lembrou a raposa. - Chegarei primeiro e esperarei por ti.
- Isso! O primeiro a chegar espera o outro.
A curta distância dali, o pedaço de galo encontrou um rio, que lhe perguntou:
- Aonde vais tão depressa, pedaço de galo?
- Lutar em Paris. Se queres vir, segue-me.
- Vou muito mais depressa do que tu.
- Como queiras. O primeiro a chegar espera o outro.
Mas, infelizmente, mais adiante, deparou-se uma montanha ao rio, que não pôde continuar.
- Vem para cima de mim, que eu levo-te - indicou o pedaço de galo.
E o rio assim fez.
Não tinham avançado muito, quando o pedaço de galo se cruzou com um enxame, cujas abelhas lhe perguntaram aonde ia.
- Lutar em Paris. Querem vir?
- Nem pensar! E muito longe. Desfalecíamos de cansaço pelo caminho.
- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-as.
E as abelhas assim fizeram.
O infortunado pedaço de galo teve de continuar a caminhar durante muito tempo. Faltava pouco para chegarem a Paris, quando, numa sementeira à beira da estrada, avistou a raposa e o lobo deitados e a roncar profundamente.
- Que fazem aqui, se iam chegar muito antes de mim? - perguntou-lhes, depois de os acordar com algumas bicadas.
- Caímos extenuados. Não podemos dar nem mais um passo.
- Então, ponham-se em cima de mim, que eu levo-os.
Por fim, decorrido todo o dia, quando o Sol estava prestes a desaparecer no horizonte, chegaram a Paris. O pedaço de galo estava tão esgotado, que a sua única pata parecia dominada por um formigueiro. Dirigiu-se a casa do seu litigante, que lhe disse:
- Hoje já é tarde para lutarmos. Esperaremos que amanheça. Entretanto, jantarás connosco. Beberemos uma garrafa de vinho e oferecer-te-ei uma cama para passares a noite descansado.
- Muito bem - aprovou o pedaço de galo. - Dois bons litigantes podem brindar juntos.
Quando anoiteceu, o homem e a sua mulher, que queriam libertar-se do infortunado matando-o, mandaram-no dormir para o redil onde se encontravam as ovelhas, para que o esmagassem durante a noite. Com efeito, quando a porta foi fechada atrás dele, os animais começaram a investir.
- Lobo - ordenou o pedaço de galo. - Sai daí e come-as.
O lobo procedeu como lhe era indicado.
De manhã, o dono da casa surpreendeu-se ao descobrir todas as ovelhas mortas e que o único ser vivo que restava no redil era o pedaço de galo. Correu a informar a esposa, que replicou com malvadez:
- Não te preocupes. Logo à noite, mandamo-lo dormir com as aves. As galinhas, perus e gansos hão-de matá-lo a fogo lento, até que fique bem cozido.
Ele tratou de seguir o conselho. Quando o introduziram pelo tecto da capoeira, todas as aves se lançaram sobre o pedaço de galo, com bicadas implacáveis.
Irritado com a indesejável recepção, ele indicou à raposa:
- Sai daí e mata todos estes imundos animais.
Foi dito e feito. Na manhã seguinte, quando a mulher se dirigiu ao galinheiro, ainda ficou mais surpreendida do que o marido na véspera. Rubra de cólera, procurou-o e determinou:
- Esta noite, fazemo-lo dormir no forno, que aqueceremos previamente. Garanto-te que amanhã o encontraremos assado.
Durante o jantar, o homem anunciou ao pedaço de galo:
- Também não podemos lutar, hoje. Estou muito triste por ter perdido os meus animais.
- Como queiras. Não tenho pressa. Posso esperar.
A noite, após o jantar, os donos da casa disseram ao hóspede:
- Decerto passaste frio, nas noites anteriores. Hoje, vais dormir no forno, onde estarás mais quente.
- Como queiram - respondeu ele. - Não sou exigente. Sinto-me bem em qualquer parte.
Quando se encontrou no forno e notou que a pata começava a chamuscar-se, ordenou ao rio:
- Sai daí e refresca-me a cama, que está demasiado quente.
O rio encheu o forno de água, que se comunicou igualmente aos fogareiros, tina, barril de lixívia, caldeira e grande parte da casa. Arroios caudalosos precipitaram-se para o exterior, e dir-se-ia que estivera a chover durante uma semana.
- Que vamos fazer com este patife? - perguntou a mulher, que tinha os pés imersos em água até meio das pernas.
- Temos de o pôr a dormir connosco, aos pés da cama - decidiu o marido. - Reduzimo-lo a papas com pontapés.
- Boa ideia. Tens alma de anjo. Assim, não nos poderá escapar.
Quando se encontraram os três na cama, o homem e a mulher começaram a mover os pés e a atingir o infortunado pedaço de galo. A princípio, este pensou que apenas o queriam desfrutar, fazendo-lhe cócegas. Mas quando principiou a sentir-se mal, ordenou às abelhas:
- Saiam daí e piquem-nos.
Só queria que vissem a prontidão com que o casal se levantou e começou a percorrer a casa e depois a rua, em camisa de dormir!
Por fim, as abelhas deixaram marido e mulher em paz. Ela, totalmente sufocada, bradou:
- Aquilo não é um galo, mas um papão! O diabo! O Anticristo! Entrega-lhe a bolsa para que nos deixe em paz. De contrário, ainda acaba por nos matar!
Por conseguinte, o dono da casa apressou-se a seguir o conselho. Restituiu a bolsa ao pedaço de galo, que se pôs de novo a caminho em direcção a casa, a fim de entregar o dinheiro à dona. Com ele, compraram uma herdade excelente e, daí em diante, viveram felizes a trabalhar as terras. O pedaço de galo passou o resto da vida sem problemas nem a ter de se preocupar com o dia de amanhã, pois a dona, agradecida, nunca permitiu que lhe faltasse trigo, milho ou cânhamo.

< Voltar à página do índice