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Se passares lentamente o rato sobre as palavras com fundo amarelo, verás o seu significado.
Há muito tempo, existiu na Irlanda um rei que só teve um filho, ao qual dispensava tanto carinho que não o deixava afastar-se da sua vista nem do castelo, fosse de noite ou de dia.
Finalmente, quando cresceu e completou vinte e um anos, o filho disse ao pai:
— Chegou o momento de me deixares ir a algum lugar.
— Se é exercício que pretendes, ofereço-te uma bola e um taco de hurling — respondeu o monarca.
No dia seguinte, deu ao jovem uma bola e um taco e ele foi praticar para o prado. Havia um ano que se dedicava a essa actividade, quando, um dia, surgiu um homenzinho cinzento por cima do fosso, dirigindo-se-lhe:
— Suponho que já deves estar bem preparado. Se quiseres, jogo uma partida contigo.
— Que vamos disputar? — perguntou o filho do rei.
— Quem ganhar receberá tudo o que desejar. O outro terá de lho dar.
Começaram a jogar e prosseguiram todo o dia, até que o Sol principiava a pôr-se quando o filho do rei conseguiu ganhar.
— E agora, que desejas? — quis saber o homenzinho cinzento.
— Que o prado do meu pai se encha de cavalos para mim, amanhã de manhã.
Na manhã seguinte, o relvado apresentava-se cheio de cavalos, que foram levados para os estábulos e tratados. O filho do rei começou de novo a praticar e continuou durante um ano e um dia. O homenzinho cinzento tornou então a aparecer e jogaram durante todo o dia. Ao anoitecer, quando o Sol principiava a descer para o horizonte, o filho do rei alcançou a vitória.
— Agora, que desejas? — perguntou o homenzinho cinzento.
— Possuir um castelo sumptuoso no prado do meu pai, amanhã de manhã, com servidores e tudo o que deve haver num lugar desses.
O castelo apareceu na manhã seguinte, com serviçais e riquezas de toda a espécie.
De novo o filho do rei praticou durante um ano e um dia, após o que o homenzinho cinzento o abordou pela terceira vez.
— Bem, filho do rei, agora que já praticaste três anos e três dias, jogarei contigo pela terceira vez.
Assim fizeram e, quando o Sol se punha ao entardecer, o homenzinho cinzento conquistou a vitória.
— Que desejas? — perguntou o filho do rei.
— Que precisamente um ano e um dia a contar de hoje, estejas na ilha Verde.
— Onde fica essa ilha?
— Procura-a, que talvez a encontres.
Naquela noite, quando regressou ao castelo, o filho do rei estava desanimado e triste.
— Que te aflige? — perguntou o rei. — Qual é a tua mágoa, meu filho?
— Desta vez, perdi a partida e tenho de procurar a ilha Verde.
— Se o deves fazer, não há outro remédio. Vou dar-te dinheiro para a viagem.
O filho do rei viajou até que chegou à casa de um gigante, que o recebeu com cordialidade.
— Onde te conduz o teu caminho? — perguntou.
— Procuro a ilha Verde — informou o filho do rei.
O gigante admitiu-o no castelo e ofereceu-lhe ceia e alojamento.
— Consultarei os meus livros durante a noite — anunciou. -Se descobrir onde se situa, dir-to-ei de manhã.
— Descobriste onde é? — quis saber o filho do rei, na manhã seguinte.
— Não, mas tenho um irmão que vive a alguma distância daqui e talvez te possa elucidar.
E o gigante deu-lhe dois pães para o caminho.
O filho do rei exprimiu a sua gratidão e empreendeu a marcha, viajando até que chegou ao castelo do segundo gigante, o qual surgiu a correr, enfurecido, com a intenção de o matar. O filho do rei apressou-se a dar-lhe um dos pães. Quando o teve nas mãos, o gigante disse:
— Isto vem da fornada da minha mãe.
O filho do rei recebeu ceia e alojamento, e o gigante perguntou-lhe:
— Onde te leva o teu caminho?
— Procuro a ilha Verde.
— Tentarei encontrar nos meus livros alguma indicação sobre ela. Se o conseguir, informar-te-ei de manhã — comunicou, quando o filho do rei ia deitar-se.
— Descobriste alguma coisa? — perguntou este último, na manhã seguinte.
— Não — respondeu o gigante -, mas segue em frente por este caminho até chegares ao castelo de outro meu irmão, que vive longe daqui. Nada receies. Dá-lhe o pão e compreenderá.
O jovem andou até que chegou ao castelo do terceiro gigante, que se enfureceu ao avistar um desconhecido e surgiu a correr, disposto a matá-lo. Mas, quando o filho do rei lhe mostrou o pão, disse:
— Isto saiu do forno da minha mãe.
Deixou então o filho do rei entrar no castelo e deu-lhe ceia e alojamento.
— De manhã, dir-te-ei onde fica a ilha Verde — prometeu.
Quando amanheceu, o filho do rei perguntou-lhe:
— Dizes-me agora onde fica a ilha Verde?
O gigante, que era o senhor do ar, indicou:
— Acompanha-me lá fora. Vou chamar todos os pássaros do céu, para lhes perguntar onde se encontra a ilha Verde. — Com estas palavras, conduziu o filho do rei ao exterior do castelo e, uma vez diante da entrada, disse: — Esqueci-me do chifre em cima da mesa.
— Vou buscá-lo — declarou o filho do rei.
Correu para o local indicado, mas não conseguiu levantar o chifre, pelo que teve de ser o próprio gigante a fazê-lo. Soprou-o, e todas as aves do mundo acudiram à sua volta.
— Falta uma — observou o gigante. — A águia-dourada.
Tomou a soprar o chifre, para ver se a águia aparecia. Esperou um quarto de hora e soprou mais uma vez. Pouco depois, viu-a voar ao longe. Quando pousou no prado quase não podia falar, de tão cansada que estava.
— Não desanimes, nem te sintas amargurado — aconselhou ela. — E come só o que eu te trouxer.
Ele pôs de parte o que o rei lhe tinha enviado e a jovem serviu-lhe uma porção do seu próprio pequeno-almoço. O jovem tragou tudo e aguardou que o rei aparecesse.
— Que te pareceu o pequeno-almoço? — perguntou.
— Gostei muito — disse o filho do rei da Irlanda.
O monarca retirou-se e, à hora combinada, surgiu a filha mais jovem com a comida e ele deitou-a fora. Mais tarde, ela reapareceu com metade do seu próprio almoço e o filho do rei comeu tudo. À noite, o rei tornou a visitar a cela e anunciou:
— De manhã, tenho um trabalho para ti. Prepara-te.
Mais tarde, a filha mais jovem do rei conduziu-o aos seus aposentos, onde conversaram demoradamente. Por fim, ela advertiu-o:
— Tens de estar lá em baixo, antes que o meu pai te vá buscar, de manhã.
Com efeito, ele já regressara à cela quando o rei entrou e explicou:
— Há um estábulo para vacas, que não foi limpo uma única vez nos últimos cento e vinte e cinco anos, onde se encontra um broche que pertencia à minha bisavó. Vai proceder à limpeza e encontra-o.
O filho do rei da Irlanda pegou numa pá e dirigiu-se ao estábulo, o qual era tão grande que tinha quarenta janelas. Começou a trabalhar, mas cada vez que retirava uma pá cheia de lixo, entrava o correspondente a três através das janelas, pelo que se viu obrigado a abandonar precipitadamente o local para não ficar sepultado.
A jovem levou-lhe o pequeno-almoço e ele chorou de desespero.
— Que te aflige, agora? — perguntou ela.
— Trabalhei muito, mas passou a haver mais para limpar no estábulo do que quando comecei.
— Não chores mais, que farei a limpeza por ti.
Acto contínuo, ela principiou a trabalhar e, por cada uma das suas pazadas saía a voar pelas janelas o lixo correspondente a vinte e uma. Por fim, encontrou o broche, entregou-o ao filho do rei da Irlanda e recomendou:
— Não vás ao castelo até passar uma hora desde o meu afastamento. Quando o meu pai te pedir o broche, não lho deves entregar. Alegas que não podes renunciar ao que a sorte te concedeu.
Quando ele chegou ao castelo, o rei perguntou-lhe:
— Encontraste o broche?
— Encontrei.
O rei pediu-lho, mas o jovem disse que não lho cederia, pois não podia renunciar ao que a sorte lhe tinha proporcionado. Por conseguinte, ficou com ele. O monarca voltou a mandá-lo para a cela e deixou o broche em seu poder. A sua filha mais jovem levou-lhe pão e água, que o jovem deitou fora. Mais tarde, cedeu-lhe metade da sua própria refeição. Ele comeu tudo, e a princesa disse que o levaria para o seu quarto à noite, mas devia regressar à cela antes que o pai aparecesse, de manhã cedo. Assim, à noite, conduziu-o aos seus aposentos no castelo, porém o jovem encontrava-se de novo na cela antes de o velho rei se apresentar.
— Hoje, tenho outra tarefa para ti.
— Não me podes encarregar de qualquer tipo de trabalho que não seja capaz de executar — declarou o filho do rei da Irlanda.
— Tenho um lago onde a minha bisavó perdeu um anel de ouro. Vais, pois, extrair toda a água e recuperar o anel.
O jovem pegou num balde e começou a retirar água do lago, mas, à medida que o fazia, tornava-se cada vez mais profundo. Finalmente, desanimado, sentou-se numa rocha e pôs-se a chorar. Ao meio-dia, a filha do rei levou-lhe metade do seu almoço e disse:
— Não deves pôr-te assim. Senta-te e come.
Em seguida, puxou do lenço e atirou-o ao lago, que começou imediatamente a secar, até que a água se extinguiu por completo. Ela encontrou o anel e entregou-o ao filho do rei da Irlanda, que se dirigiu para o castelo uma hora depois de se separar da princesa.
— Encontraste o anel que te mandei procurar, esta manhã? — perguntou o monarca.
— Encontrei.
— Dá-mo.
— Não posso renunciar ao que a sorte me proporcionou — declarou o jovem, e ficou com o anel.
O rei mandou-o recolher à cela e enviou lá a filha mais jovem com pão e água, que o filho do rei da Irlanda deitou fora, como sempre. Mais tarde, ela levou-lhe metade do seu jantar e conduziu-o aos seus aposentos no castelo. Depois, disse:
— Agora, tens de voltar para a cela, antes que apareça o meu pai.
Ele correu para lá e acabava de chegar quando o rei fez a sua aparição.
— Como passaste a noite? — inquiriu.
— Na verdade, muito agradavelmente — respondeu o jovem.
— Tenho mais uma tarefa para ti.
— De que se trata?
— Há uma espada na copa de uma árvore e quero que ma tragas.
O filho do rei pegou no seu machado e traçou uma linha em volta do tronco da árvore, para verificar se crescia, como acontecera ao lago e ao lixo do estábulo. Em seguida, começou a cortar a árvore, mas, a cada golpe que lhe aplicava, o tronco tornava-se cada vez mais grosso. Por fim, sentou-se e começou a chorar. A filha do rei apareceu então e disse-lhe:
— Não estejas triste, nem abatido. Eu própria derrubarei a árvore.
Com uma única machadada, fê-la tombar no chão, após o que retirou a espada da copa, entregou-a ao filho do rei da Irlanda e indicou-lhe:
— Volta ao castelo uma hora depois de mim. Se o meu pai te pedir a espada, não lha entregues. Diz que não podes renunciar ao que a sorte te ofereceu.
Afastou-se e, uma hora mais tarde, o jovem seguiu o mesmo caminho.
— Derrubaste a árvore? — perguntou o monarca.
— Derrubei.
— Dá-me a espada.
— Não, porque não quero renunciar ao que a sorte me proporcionou.
Mandou-o voltar para a cela, depois de lhe dizer:
— Sei que todos os nativos da Irlanda sabem narrar contos. Esta noite, levar-te-ei aos meus aposentos. Quero que me contes alguns.
Assim fez. Entretanto, a filha mais jovem tinha disposto uma cama em cada lado do quarto — uma para o pai e a outra para o filho do rei da Irlanda. Providenciou para que as lanternas iluminassem pouco, pelo que o aposento estava imerso na penumbra. Depois, levou três pães grandes que ela própria tinha confeccionado, deixou um na cama do jovem, outro no chão, no meio do quarto, e o terceiro junto da porta. Por último, a princesa e o filho do rei da Irlanda puseram-se apressadamente em fuga.
— Muito bem, filho de um rei, começa o teu conto — disse o monarca.
O pão que se encontrava na cama iniciou a narração, a qual se prolongou tanto que ocupou grande parte da noite. No final, o rei reconheceu:
— É um bom conto. Agora, conta-me outro.
O pão que estava no chão, no meio do quarto, encetou a segunda narração e alongou-se tanto que, quando terminou, já quase era dia.
— Este conto também é muito bom — admitiu o rei. — Conta-me um terceiro.
O pão junto da porta disse:
— Vou contar um que te despertará a atenção, rei da ilha Verde. A tua filha fugiu esta noite com o filho do rei da Irlanda. Neste momento, encontram-se longe daqui e compete-te persegui-los.
O monarca levantou-se de um salto e, ao aproximar-se da cama onde supunha que se encontrava deitado o filho do rei da Irlanda, deparou-se-lhe o pão. Compreendeu que tinha sido obra da filha mais jovem, chamou as outras duas e partiram os três em perseguição dos fugitivos.
A filha mais jovem tinha a certeza de que o pai e as irmãs os perseguiriam, pelo que recomendou ao filho do rei da Irlanda que olhasse para trás e verificasse se vinha alguém no seu encalço.
Ele obedeceu e disse:
— Vejo três pássaros que nos seguem ao longe.
— Torna a olhar.
— Parecem três montões de feno.
— Olha mais uma vez.
Ele assim fez e anunciou:
— Parecem três montanhas.
— Atira o broche para trás de ti.
Atirou-o e, naquele momento, todo o campo se cobriu de enormes agulhões de aço, erectos como um bosque denso e sem ramos, perante o rei da ilha Verde e as suas duas filhas.
— Vão rapidamente a casa e tragam-me o martelo que deixei debaixo da cama — ordenou o monarca.
Elas não tardaram a reaparecer com o martelo, que era grande e pesado e com o qual o pai abriu caminho através dos agulhões de aço, pelo que puderam continuar em frente.
Pouco depois, a filha do rei indicou ao filho do rei:
— Olha para trás e verifica se consegues vê-los.
— Vejo três coisas do tamanho de pássaros a seguirem-nos.
— Torna a olhar — volveu ela, passado algum tempo.
— Agora, parecem três montões de feno.
— Olha mais uma vez.
— Parecem três montanhas.
— Atira o anel para trás de ti.
No momento em que ele obedeceu, todo o campo atrás deles se converteu num lago. O rei da ilha Verde não o podia atravessar, mas ordenou às duas filhas mais velhas:
— Vão a casa e tragam o balde que está no meu quarto.
Elas partiram apressadamente e não tardaram a voltar com o balde.
O monarca pegou nele e utilizou-o para secar o lago, após o que reataram apressadamente a marcha.
A filha mais jovem do rei ordenou ao filho do rei da Irlanda:
— Olha para trás e verifica se eles nos seguem.
— Parecem de novo três pássaros.
— Toma a olhar.
— São como três montões de feno.
— Olha mais uma vez.
— Parecem três montanhas.
— Atira a espada para trás de ti.
O jovem assim fez e todo o campo atrás deles se cobriu de um bosque tão denso, que ninguém o poderia atravessar.
O rei ordenou às filhas:
— Vão a casa buscar o machado.
Quando lho entregaram, abriu caminho através do mato e reataram a perseguição a toda a velocidade.
Os dois fugitivos chegaram a um rio de quase dois quilómetros de largura. Saltaram para dentro de uma embarcação que havia na margem e remaram com todo o vigor. O rei da ilha Verde podia alcançar, de um salto, mais de um quilómetro. A embarcação encontrava-se exactamente a essa distância, quando os perseguidores chegaram à margem. Ele deu um salto para a frente e foi pousar precisamente atrás dela. Naquele momento, o filho do rei da Irlanda atingiu-o na cabeça com o remo e o monarca morreu. Por conseguinte, ele e a princesa chegaram sem problemas à outra margem e seguiram em frente calmamente.
— Agora, já não temos de recear ninguém — reconheceram.
O filho do rei da Irlanda viajou com a filha do rei da ilha Verde, até que chegaram às proximidades do castelo do pai do primeiro.
— Aguarda aqui um momento — indicou ele. — Venho já buscar-te.
— Entretanto, não beijes ninguém, nem permitas que te beijem — advertiu a princesa. — De contrário, esqueces-me no mesmo instante.
O jovem entrou no castelo. Não beijou ninguém, nem consentiu que o beijassem, mas o seu cão, que estava deitado a um canto, levantou-se de um salto e beijou-o. Acto contínuo, esqueceu-se da princesa. Ela cansou-se de esperar e, como ele não aparecia, internou-se num bosque.
Havia aí um ferreiro, com a sua forja. Quando começou a anoitecer, a jovem trepou à copa de uma das árvores, junto da qual se encontrava um poço. A noite estava iluminada pelo luar e a serviçal do ferreiro aproximou-se para levar água. Ao ver o reflexo da jovem, julgou que era do seu rosto e exclamou:
— Que sorte a minha! Com uma cara assim tão bela e tenho de servir na cabana de um ferreiro!
Largou o balde, afastou-se, e o ferreiro não voltou a saber dela. A esposa esperava o regresso da moça e, receando que tivesse caído ao poço, foi procurá-la. Ao ver o reflexo na água, pensou que era o seu próprio rosto e lastimou-se:
— É vergonhoso para mim ser a mulher e escrava de um ferreiro, com os atributos físicos que possuo!
Por conseguinte, não voltou à casa do marido.
Este foi procurar a serviçal e a esposa e, chegado ao poço, olhou para dentro, viu o reflexo, apercebeu-se de que era de uma mulher, voltou a cabeça para cima e avistou uma jovem na árvore.
— Desce daí — ordenou-lhe. — Por tua culpa, fiquei sem serviçal nem esposa. Agora, tens de vir comigo e cuidar da minha casa.
A princesa acompanhou-o e cozinhou para ele, até que, um dia, inteirou-se de que o filho do rei ia casar, e o ferreiro disse-lhe.
— Se fosses ao casamento, podias encontrar trabalho e ganhar algum dinheiro.
E ela foi. Na véspera da boda, tinha de se confeccionar um bolo enorme.
— Posso encarregar-me disso? — perguntou ao chefe de cozinha.
Este irritou-se e replicou:
— Não serias capaz.
Ela deu-lhe cinco moedas de ouro e o homem deixou-a preparar o bolo. Apressou-se a começar e incluiu nele o castelo do pai, o estábulo e o lago, para que o filho do rei os pudesse ver.
Quando apresentou o resultado, todos disseram:
— Há um estranho no castelo.
Chamaram o chefe de cozinha, o qual explicou que tinha sido feito por uma jovem.
— Vai chamá-la — ordenou o rei.
Ela compareceu e ficou na sua comitiva. A noite, todos narraram contos e, no final, o monarca indicou-lhe:
— Agora, é a tua vez.
— Não sei nenhum — alegou ela -, mas, se me permitires, ensinar-lhes-ei um truque.
— Com certeza — disse o rei.
Lançou ao solo dois grãos de aveia, dos quais surgiram um galo e uma galinha. Em seguida, lançou outro entre ambos. A galinha apanhou-o e o galo picou-a.
— Não me terias feito isso no dia em que limpavas o estábulo e fui obrigada a ajudar-te — queixou-se a galinha.
A jovem lançou novo grão, com idêntico resultado: a galinha apanhou-o e o galo picou-a.
— Não me terias feito isso no dia em que esvaziavas o lago para encontrar um anel — lembrou a galinha.
A jovem lançou um terceiro grão, a galinha recolheu-o e o galo picou-a.
— Não me terias feito isso no dia em que derrubavas a árvore enorme para recuperar a espada do meu pai, nem quando cozi três pães grandes e fugimos.
De repente, o filho do rei recordou-se dela e reconheceu-a imediatamente, pelo que se voltou para o pai e anunciou:
— Não terei outra esposa que não seja esta mulher.
O filho do rei da Irlanda desposou a filha do rei da ilha Verde e viveram eternamente felizes.
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Há muito tempo, existiu um rei na Irlanda que teve treze filhos, aos quais, à medida que iam crescendo, ensinou os conhecimentos próprios da sua hierarquia e os exercícios e artes que lhe correspondiam.
Um dia, foi à caça e avistou um cisne com treze crias, que afugentava a décima terceira, para que não se aproximasse das outras.
A atitude despertou particularmente a atenção do monarca, que, quando regressou ao palácio, mandou chamar o Sean dall Glic e disse-lhe:
— Hoje, quando caçava, presenciei uma coisa verdadeiramente assombrosa: um cisne com treze crias enxotava com insistência a décima terceira e conservava as outras doze junto de si. Explica-me a causa e o motivo de semelhante comportamento. Que pode levar uma mãe a odiar um dos seus pequenos e proteger os restantes?
— Vou elucidar-te — respondeu Sean dall Glic. — Todas as criaturas da terra, sejam homens ou animais, que têm treze descendentes, devem pôr de parte o décimo terceiro, para que vagueie só pelo mundo e encontre o seu próprio destino, de modo que a vontade do céu recaia nele e não afecte os outros. Ora, tu, que tens treze filhos, deves entregar o décimo terceiro ao Diachbha.
— É, pois, esse o significado do que aconteceu com o cisne do lago? Devo abandonar o meu décimo terceiro filho ao Diachbha?
— Exactamente. Tens de abandonar um dos treze.
— Mas como, se estimo todos igualmente?
— Deves fazer o seguinte: quando regressarem a casa, esta noite, fecha a porta ao que chegar em último lugar.
Embora nenhum deles fosse menos inteligente ou desembaraçado que os outros, o mais velho, Sean Ruadh, era o melhor, o herói. E aconteceu que, naquela noite, foi o último a chegar a casa, pelo que o pai lhe fechou a porta na cara. O rapaz ergueu os braços e perguntou:
— Que tencionas fazer comigo, pai? Que pretendes?
— É meu dever entregar um dos filhos ao Diachbha e, como foste o décimo terceiro a chegar, tens de ir-te.
— Muito bem. Dêem-me roupa para o caminho.
Deram-lha, e depois o pai entregou-lhe o corcel negro, capaz de atingir a velocidade do vento e ultrapassá-la.
Sean Ruadh subiu para a sela e afastou-se rapidamente, seguindo dia após dia sem descanso e dormindo nos bosques, à noite.
Uma manhã, vestiu roupa velha que levava na albarda da sela e, após deixar o corcel no bosque, encaminhou-se para uma clareira. Não havia muito tempo que se encontrava ali, quando se aproximou um rei, o qual se deteve na sua frente.
— Quem és e que fazes aqui? — perguntou o monarca.
— Estou perdido — respondeu Sean Ruadh. — Não sei para onde ir nem o que vou fazer.
— Se é esse o caso, digo-te o que farás: virás comigo.
— Porquê?
— Bem, possuo muitas vacas e não tenho ninguém que se encarregue delas. Também estou a contas com um problema grave: a minha filha sucumbirá a uma morte horrível, muito em breve.
— Como morrerá?
— Há uma urfeist, um monstro que tem de devorar a filha de um rei de sete em sete anos. No final de cada um desses períodos, surge do mar à procura do seu alimento. Agora, compete à minha, e não sabemos quando a urfeist aparecerá. Todo o castelo e eu próprio já trajamos de luto pela minha infortunada filha.
— Talvez haja alguém que a salve — aventurou o jovem.
— Veio um exército completo de filhos de cavaleiros, que prometeram livrá-la de tão triste fim, mas receio que nenhum se atreva a enfrentar a urfeist.
Sean Ruadh acedeu em servir o rei durante sete anos e acompanhou-o ao castelo.
Na manhã seguinte, conduziu as vacas ao pasto.
Mas, não longe das terras do rei, havia três gigantes que viviam noutros tantos castelos, à vista uns dos outros, e gritavam todas as noites antes de se deitar. O uivo que cada um proferia era tão intenso, que se ouvia à distância.
O jovem levou o gado às terras de um gigante, derrubou o muro e impeliu os animais para dentro. A erva era muito alta, o triplo da de qualquer pastagem do rei.
Enquanto Sean Ruadh estava sentado a vigiar o gado, um gigante aproximou-se a correr e bradou:
— Não sei se te arranque um pedaço de carne e o meta no nariz ou se te aplique uma sova!
— Mal de mim se tivesse vindo para outra coisa que não fosse privar-te da vida.
— Como preferes lutar, nas rochas cinzentas ou com espadas bem aguçadas?
— Lutarei contigo nas rochas cinzentas, onde as tuas longas pernas terão de se dobrar e as minhas permanecerão erectas.
Colocaram-se frente a frente e começaram a pelejar. Na primeira arremetida, Sean Ruadh afundou o adversário até aos joelhos entre as duras rochas cinzentas, na segunda mergulhou-o até à cintura e na terceira até aos ombros.
— Tira-me daqui! — gritou o gigante. — Em troca, dou-te o meu castelo e tudo o que possuo: a minha espada de luz, que nunca falha o primeiro golpe mortal, e o cavalo negro, que atinge a velocidade do vento e até a ultrapassa. Encontra-se tudo aqui, no meu castelo.
Sean Ruadh matou-o e dirigiu-se ao castelo, onde a governanta proferiu:
— Sê bem-vindo! Mataste o sujo gigante que vivia aqui. Acompanha-me, para que te mostre todas as riquezas e tesouros. — Ela abriu a porta da arrecadação e acrescentou: — Tudo o que está aqui é teu. Aceita as chaves do castelo.
— Fica com elas, até que eu volte, outro dia. Acorda-me ao anoitecer. — E Sean Ruadh deitou-se na cama do gigante.
Dormiu até ao pôr do Sol e conduziu o gado do rei de regresso a casa. As vacas nunca haviam dado tanto leite como nessa noite. Tanto como o que produziam anteriormente durante uma semana.
Depois, procurou o rei e perguntou-lhe:
— Que novidades há sobre a tua filha?
— A serpente gigante ainda não apareceu, mas pode chegar amanhã.
— Bem, é possível que amanhã adie a vinda para outro dia.
O monarca ignorava totalmente a força do jovem, pois estava descalço, andrajoso e modestamente ataviado.
Na segunda manhã, Sean Ruadh levou as vacas do rei para as terras do segundo gigante. Este surgiu com as mesmas perguntas e ameaças do primeiro, e o pastor reagiu como na véspera.
Embrenharam-se na luta e quando o gigante estava afundado até aos ombros nas duras rochas cinzentas, disse:
— Dou-te a minha espada de luz e o cavalo negro, se me concederes a vida.
— Onde está a espada?
— Pendurada na parede, por cima da minha cama.
Sean Ruadh correu para o castelo, pegou na espada, que gritou quando a brandiu, mas ele segurou-a com firmeza, regressou ao local onde o gigante se encontrava e perguntou-lhe:
— Onde posso experimentar o fio desta espada?
— Contra um pau.
— Não vejo aqui nenhum pau melhor que a tua cabeça.
Com estas palavras, o jovem cortou-lha. Em seguida, dirigiu-se de novo ao castelo e pendurou a espada no seu lugar.
— Bendito sejas! — exclamou a governanta. — Mataste o gigante. Acompanha-me, para que te mostre todas as suas riquezas e tesouros, agora teus para sempre.
Sean Ruadh encontrou no segundo castelo tesouros ainda mais valiosos que no anterior. Depois de ter visto tudo, devolveu as chaves à governanta, para que as guardasse até ele precisar delas. A seguir, dormiu como na véspera e regressou a casa com as vacas, ao anoitecer.
— A sorte acompanha-me, desde que estás comigo — declarou o rei. — As minhas vacas produzem o triplo do leite.
— Soube-se alguma coisa da urfeist? — perguntou o jovem.
— Hoje também não apareceu — informou o monarca. — Mas pode vir amanhã.
— No terceiro dia, Sean Ruadh saiu com as vacas do rei e conduziu-as às terras do terceiro gigante, o qual irrompeu do castelo e ofereceu luta mais feroz que os seus antecessores, mas o pastor afundou-o entre as rochas cinzentas até que estas lhe chegaram à altura dos ombros e matou-o.
Foi recebido com alegria pela governanta do castelo deste último, que lhe mostrou as riquezas e lhe entregou as chaves, mas ele devolveu-lhas até que as pedisse de novo. Naquela noite as vacas do rei deram mais leite que nunca.
No quarto dia, Sean Ruadh saiu com o gado, mas deteve-se no castelo do primeiro gigante. Em obediência ao seu pedido, a governanta foi buscar a indumentária do antigo amo, que era totalmente preta. Ele vestiu-a e colocou a espada de luz à cintura. Montou então no corcel negro, que atingiu a velocidade do vento e a ultrapassou, seguindo entre o céu e a terra, sem se deter até chegar à praia, onde viu muitas centenas de filhos de cavaleiros e paladinos, ansiosos por salvar a filha do rei, mas que tinham tanto medo da terrível urfeist que não se atreviam a aproximar-se da jovem.
Quando viu esta última e os trémulos paladinos, Sean Ruadh regressou ao castelo. Pouco depois, o rei avistou, a cavalgar entre o céu e a terra, um desconhecido de aspecto magnífico, que se deteve na sua frente.
— Que é aquilo que vi à beira-mar? — perguntou o desconhecido. — Trata-se de alguma feira ou reunião importante?
— Não sabes que chegou o monstro para destruir a minha filha?
— Essa é nova para mim — declarou, e afastou-se velozmente na sua montada.
O ginete negro não tardou a encontrar-se perante a princesa, sentada, só, numa rocha junto ao mar. Quando olhou o desconhecido, pensou que era o homem mais atraente que já vira, e o seu coração alegrou-se.
— Não tens ninguém que te proteja?
— Ninguém.
— Permites que repouse a cabeça no teu regaço, até que a urfeist apareça? Nessa altura, despertarei.
Pousou a cabeça no regaço da princesa e adormeceu. Entretanto, ela arrancou-lhe três cabelos da cabeça e guardou-os no peito. Acabava de o fazer, quando a urfeist surgiu do mar, imensa como uma ilha e a cuspir água para o ar enquanto se movia. O desconhecido acordou e levantou-se de um salto, disposto a defender a princesa.
A horrível serpente avançou ao longo da beira-mar, em direcção à princesa, de boca aberta, tão larga como uma ponte, até que o desconhecido se lhe colocou na frente e bradou:
— Esta mulher é minha, não tua!
Brandiu a espada de luz e cortou a cabeça ao monstro com um único golpe, porém a cabeça regressou prontamente ao seu lugar e cresceu de novo.
Num abrir e fechar de olhos, a urfeist deu meia volta e regressou ao mar, mas, enquanto submergia, ameaçou:
— Voltarei amanhã e tragarei tudo o que se me opuser.
Sean Ruadh montou no corcel negro e afastou-se antes que a princesa o pudesse deter. O coração dela amargurou-se quando o viu cavalgar a toda a velocidade entre o céu e a terra, mais rápido que o vento.
O jovem foi ao castelo do primeiro gigante e deixou lá o cavalo, as roupas e a espada. Depois, dormiu na cama do gigante até anoitecer, quando a governanta o acordou. Em seguida, conduziu as vacas a casa, procurou o rei e perguntou-lhe:
— Como correram hoje as coisas para a tua filha?
— A urfeist surgiu do mar para a levar, mas apareceu um paladino extraordinário, que cavalgava entre o céu e a terra.
— Quem era?
— Bem, agora há muitos homens que dizem ser ele. Mas a minha filha ainda não está totalmente a salvo, pois a urfeist jurou voltar amanhã.
— Não te preocupes. Talvez apareça outro paladino.
Na manhã seguinte, Sean Ruadh levou as vacas do rei às terras do segundo gigante, deixou-as a pastar, e visitou o castelo, onde foi recebido cordialmente pela governanta, que lhe disse:
— Sê bem-vindo. Aqui me tens ao teu dispor, e encontra-se tudo em ordem.
— Traz-me o cavalo castanho e prepara-me o vestuário e a espada do gigante.
Ela levou-lhe as roupas, o esplêndido traje azul do segundo gigante e a espada de luz. Sean Ruadh envergou a nova indumentária, pegou na espada, subiu para a sela do cavalo castanho e cavalgou velozmente entre o céu e a terra com o triplo da rapidez do dia anterior.
Primeiro, foi até à beira-mar e viu a filha do rei sentada, só, na rocha, e os príncipes e os paladinos afastados dela, a tremer de medo. Depois, cavalgou até onde estava o monarca, perguntou o motivo da multidão que enchia a praia e recebeu a mesma resposta da véspera.
— Não haverá homem algum que a proteja? — perguntou o jovem.
— Bem, há muitos que prometeram salvá-la e afirmam que são valentes, mas nenhum desembainhará a espada para enfrentar a urfeist, quando surgir do mar.
Sean Ruadh afastou-se antes que o rei se desse conta e encaminhou-se para onde a princesa se encontrava, vestindo o traje azul e com a espada de luz à cintura.
— Não há ninguém que te proteja?
— Ninguém.
— Permite-me repousar a cabeça no teu regaço, e acorda-me quando a urfeist aparecer.
Pousou a cabeça no regaço da princesa e, enquanto dormia, ela retirou os três cabelos do peito arrancados na véspera, comparou-os com os dele e murmurou:
— És o homem que esteve aqui ontem.
Quando a urfeist surgiu, vinda do mar, ela acordou o desconhecido, que se levantou de um salto e correu para a praia.
Movendo-se com maior rapidez e levantando mais água que no dia anterior, o monstro chegou à praia com a boca aberta. Sean Ruadh tornou a interpor-se no seu caminho e, com uma única arremetida da espada, cortou a urfeist ao meio. No entanto, as duas partes voltaram a unir-se rapidamente, formando um único corpo como dantes.
Em seguida, a serpente regressou ao mar, enquanto ameaçava:
— Nem todos os paladinos do mundo a salvarão, amanhã!
O jovem montou imediatamente no seu corcel e regressou ao castelo, deixando a princesa desesperada com o afastamento do único homem que se atrevera a protegê-la.
Sean Ruadh vestiu a roupa habitual e conduziu as vacas ao estábulo, como sempre.
— Um paladino desconhecido, todo trajado de azul, salvou a minha filha, hoje — comunicou-lhe o monarca. — Mas está muito pesarosa, porque ele desapareceu.
— Bem, isso é uma ninharia, pois a sua vida está a salvo.
Naquela noite, houve uma festa no castelo do rei, para a qual todos foram convidados, e a alegria iluminava os rostos porque a princesa se encontrava de novo sã e salva.
No dia seguinte, Sean Ruadh conduziu as vacas ao pasto do terceiro gigante, dirigiu-se ao castelo e pediu à governanta que lhe trouxesse a espada do gigante e o vestuário e levasse o corcel vermelho para a entrada. A indumentária do terceiro gigante tinha antas cores como as que existem no firmamento, enquanto as botas eram de cristal azul.
Assim trajado e montado no cavalo vermelho, o jovem era o homem mais atraente do mundo. Quando se preparava para partir, a governanta disse-lhe:
— Desta vez, a serpente estará tão enfurecida que nenhuma arma a poderá deter. Surgirá do mar com três enormes espadas a irromperem-lhe da boca, e poderia reduzir o mundo inteiro a picado e tragá-lo, se se lhe opusesse. Só há uma maneira de a vencer, e vou ensinar-ta. Leva esta maçã castanha e, quando a urfeist surgir impetuosamente do mar, atira-lha à garganta. Verás então que se afundará e dará à costa, morta.
Sean Ruadh cavalgou no corcel vermelho entre o céu e a terra, ao triplo da velocidade do dia anterior. Avistou a donzela sentada, só, na rocha e os trémulos cavaleiros à distância, a aguardar os acontecimentos, assim como o rei a ansiar por que aparecesse alguém que lhe salvasse a filha. Em seguida, o jovem aproximou-se dela e pousou a cabeça no seu regaço. Quando viu que adormecera, ela retirou do peito os três cabelos que arrancara da primeira vez, comparou-os com os da cabeça de Sean Ruadh e disse:
— És o homem que me salvou ontem.
A urfeist não se fez esperar. A princesa acordou o jovem, que se ergueu de um salto e se encaminhou para o mar. A serpente era enorme — metia medo só de a olhar -, com uma boca tão grande que podia tragar o mundo e da qual emergiam três aguçadas espadas. Quando o viu, avançou demolidoramente com um rugido terrível, porém ele atirou-lhe a maçã à garganta, e o monstro caiu indefeso na praia, para se desfazer numa gelatina espessa e hedionda, à beira-mar.
Em seguida, Sean Ruadh voltou-se para a princesa e anunciou:
— A urfeist não voltará a molestar ninguém.
Ela correu e tentou detê-lo, mas já estava montado no corcel vermelho, a cavalgar entre o céu e a terra, antes de poder impedi-lo. No entanto, segurou-se com tanta força a uma das botas de cristal azul, que Sean Ruadh teve de lha abandonar nas mãos.
Quando, naquela noite, ele levou as vacas para o estábulo, perguntou ao rei:
— Que sabes da urfeist?
— A sorte não me desampara, desde que estás comigo — respondeu o monarca. — Um paladino que trajava com todas as cores do firmamento e cavalgava um corcel vermelho entre o céu e a terra, destruiu hoje a serpente. A minha filha está a salvo para sempre, mas ameaça suicidar-se porque não tem a seu lado o homem que a libertou do terrível destino.
Naquela noite, realizou-se uma festa no castelo do rei, com uma pompa jamais vista. Os salões estavam a abarrotar de príncipes e paladinos, que proclamavam:
— Fui eu que salvei a princesa!
O monarca mandou chamar o Sean dali Glic e perguntou o que devia fazer para encontrar o homem que salvara realmente a filha. A resposta foi a seguinte:
— Manda divulgar por todo o mundo que o homem cujo pé se adapte à bota de cristal azul é o paladino que matou a urfeist e a quem concederás a princesa em casamento.
E o rei fez circular por todo o mundo a informação de que os candidatos deviam vir experimentar a bota. Todavia, a uns ficava demasiado grande e a outros demasiado pequena. No final de todas as experiências infrutíferas, Sean dall Glic lembrou:
— Todos se sujeitaram à experiência, excepto o pastor.
— Ora, esse anda sempre nos pastos, com as vacas! Para quê perder tempo com ele?
— Isso não interessa. Encarrega vinte homens de o ir buscar.
O rei assim fez, e os vinte homens foram encontrar o pastor a dormir à sombra de um muro de pedra. Quando começavam a fazer uma corda de feno para o atar, acordou e preparou vinte cordas antes que eles terminassem a primeira. Em seguida, lançou-se-lhes em cima, atou-os num fardo e pendurou-o no muro.
Entretanto, no castelo, fartaram-se de esperar pelos vinte homens que regressariam com o pastor, até que o rei enviou mais vinte, munidos de espadas, para averiguarem o motivo da demora.
Quando se encontraram perante Sean Ruadh, eles principiaram a fazer uma corda para o atar, mas o pastor preparou vinte antes que concluíssem a primeira e, por muito que se debatessem, atou-os num fardo, que pendurou no muro ao lado do outro. Como nenhum dos dois grupos reaparecia, Sean dall Glic indicou ao rei:
— Vai prostrar-te diante do pastor, porque atou quarenta homens em dois fardos e os fardos entre si.
O monarca foi na verdade prostrar-se perante o pastor, que o mandou levantar e perguntou:
— A que propósito vem isto?
— Tens de experimentar a bota de cristal.
— Não posso, pois tenho o meu trabalho aqui.
— Não te preocupes. Regressarás a tempo de o completar.
O pastor libertou os quarenta homens e acompanhou o rei. Quando chegaram ao castelo, viu a princesa, nos seus aposentos, dois pisos acima da entrada, e a bota de cristal no peitoril da janela.
Naquele momento, a bota saltou de lá, cruzou o espaço na direcção dele e ajustou-se-lhe ao pé. A princesa desceu num abrir e fechar de olhos e anichou-se nos braços do jovem.
O castelo estava cheio de cavaleiros e paladinos, que proclamavam que tinham sido eles a salvar a princesa.
— Que fazem aqui todos estes homens? — perguntou Sean Ruadh, surpreendido.
— Ora! — replicou o rei. — Tentavam calçar a bota. Acto contínuo, o jovem desembainhou a espada, decapitou todos e lançou as cabeças e os corpos à montureira nas traseiras do castelo.
O rei enviou navios com mensageiros a todos os monarcas e rainhas do mundo — de Espanha, França, Grécia e Dinamarca, e a Diarmuid, filho do rei da luz -, para que assistissem ao enlace de sua filha com Sean Ruadh.
Depois da boda, este último foi viver com a esposa para o reino dos gigantes e deixou o sogro nas suas próprias terras.
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Era uma vez um homem pobre que vivia no fértil vale de Aherlow, junto do lúgubre monte Galtee. Como tinha uma enorme corcova nas costas, dava a impressão de que lhe haviam empurrado o corpo para cima, depositando-o nos ombros. A cabeça estava tão oprimida para baixo pelo peso, que, quando se sentava, costumava apoiar o queixo no joelho. Os habitantes da região tinham medo de se cruzar com ele num lugar solitário, embora o pobre homem fosse tão pacífico e inofensivo como uma criança recém-nascida. Mas a sua deformação era tão pronunciada, que quase não parecia uma criatura humana, pelo que pessoas mal-intencionadas tinham posto a circular histórias estranhas a seu respeito. Dizia-se que possuía profundos conhecimentos das ervas e beberagens, mas, de qualquer modo, não subsistia a menor dúvida de que era muito habilidoso e fabricava chapéus e cestos de palha e vime, angariando assim o seu sustento.
Chamavam-lhe Dedalzinho porque usava sempre no seu pequeno chapéu um ramo de erva-dedal, ou capuchinho-dos-duendes. Em troca dos trabalhos que executava, recebia um cêntimo mais que os outros, pelo que as fantasias a seu respeito decerto se deviam à inveja que suscitava.
Como quer que fosse, certa tarde o Dedalzinho dirigiu-se da cidade de Cahir à de Cappagh e, como a pesada corcova só lhe permitia caminhar muito devagar, quando chegou ao antigo monumento megalítico de Knockgrafton, situado à direita do caminho, já anoitecera. Extenuado, e desencorajado ante a evidência de que ainda lhe faltava muito para calcorrear, sentou-se junto dos túmulos para descansar e contemplou, apreensivo, a lua cheia que naquele momento despontava sobre o horizonte.
De súbito, chegou-lhe aos ouvidos uma estranha música subterrânea. Prestou atenção e reconheceu que nunca ouvira nada tão belo — era como o som de muitas vozes unindo-se e misturando-se maravilhosamente entre si, de tal modo que lhe parecia ouvir uma única, apesar de, individualmente, terem sons distintos. A letra do cântico era: «Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort.» Seguia-se uma breve pausa e a música era reatada de novo desde o princípio.
O Dedalzinho escutava atentamente e quase não se atrevia a respirar para não perder uma única nota. Deu-se claramente conta de que o canto procedia do túmulo e, embora a princípio lhe proporcionasse um prazer profundo, acabou por se cansar de ouvir repetidamente o mesmo refrão sem qualquer variação. Depois de tomarem a cantar «Da Luan, Da Mort» mais três vezes, aproveitou uma breve pausa, entoou a melodia e fê-la seguir das palavras «Augus Da Cadine!», após o que se uniu às vozes do túmulo e cantou «Da Luan, Da Mort», mas, durante a pausa, acrescentou o seu «Augus Da Cadine».
Ao aperceberem-se da apostila ao seu canto espiritual, os pequenos seres do túmulo alegraram-se extraordinariamente e decidiram em seguida trazer para junto deles aquele ser humano cuja destreza musical ultrapassava, de longe, a sua. Assim, o Dedalzinho viu-se levado para baixo com a rapidez de um turbilhão.
Que coisas magníficas viram os olhos da pequena criatura ao descer ao interior do túmulo, flutuando e dando voltas sobre si mesmo, mais leve que uma palha! A encantadora música manteve o ritmo como é devido durante a sua viagem, mas prestaram-lhe maior homenagem, quando o colocaram acima de todos os músicos. Tinha criados ao seu serviço, que satisfaziam tudo o que o seu coração desejava, e deu-se conta de como aqueles pequenos seres o estimavam. Numa palavra, não o teriam tratado melhor se fosse o homem mais importante de todo o país.
Depois, descobriu que sussurravam entre si e tomavam deliberações e, embora lhe agradasse a forma elegante como o faziam, começou a sentir medo. Por fim, um dos pequenos seres aproximou-se e proferiu:
Ai, Dedal, Dedal, Dedal!
Recebe um novo valor!
A tua corcova cair verás
E sentir-te-ás melhor,
E muito contente ficarás!
Ai, Dedal, Dedal, Dedal!
Mal acabaram de pronunciar estas palavras, o Dedalzinho sentiu-se tão leve e feliz que poderia alcançar a Lua de um salto, como a vaca do conto do gato e o violino. Viu com a maior alegria do mundo a corcova deslizar dos ombros para o chão. Em seguida, tentou comprovar se podia levantar a cabeça, mas fê-lo com precaução e prudência, por recear que embatesse nas guarnições daquela enorme sala. Depois, olhou em volta com o maior dos assombros, para se recrear em todas as coisas que cada vez lhe pareciam mais belas. Finalmente, ficou tão cansado de observar aquele esplêndido aposento, que sentiu a cabeça a andar à roda, a vista enevoou-se e mergulhou em sono profundo.
Quando acordou, era completamente de dia. Brilhava o sol, os pássaros cantavam e ele encontrava-se deitado junto da colina dos gigantes, enquanto algumas vacas e ovelhas pastavam pacificamente em redor. Depois de rezar as suas orações, a primeira coisa que o Dedalzinho fez foi levar a mão à corcova, mas não havia nem vestígios dela nas suas costas. Observou-se com orgulho, pois convertera-se num jovem garboso e ágil e, o que não lhe pareceu pouco, viu que vestia roupa nova da cabeça aos pés, o que o levou a depreender que se devia aos espíritos.
Pôs-se então a caminho em direcção a Cappagh. Movia-se com tanta elegância e saltava tanto em cada passo, que dir-se-ia que, durante toda a sua vida, não fizera outra coisa. Ninguém que se cruzasse com ele reconhecia o Dedalzinho sem a corcova, pelo que teve muito trabalho a convencer as pessoas de que era realmente ele. E, com efeito, o aspecto também não era o mesmo.
Como se costuma dizer, a história da corcova do Dedalzinho tornou-se conhecida em toda a parte e foi acolhida com girândolas de foguetes. Num raio de muitos quilómetros, toda a gente, nobre ou simples, não falava de outra coisa.
Uma manhã, o Dedalzinho estava sentado à porta de casa, particularmente bem-disposto, quando se aproximou uma mulher idosa, que solicitou:
— Indica-me o caminho para Cappagh.
— Não é necessário, pois isto aqui é Cappagh. Mas de onde vens?
— Da região de Decie, no condado de Waterford, à procura de um homem a quem chamam Dedalzinho e, segundo se diz, as fadas suprimiram uma corcova dos ombros. O filho da minha comadre tem uma que o oprime tanto que acabará por matá-lo. Talvez se livrasse dela, se pudesse empregar um feitiço como o do Dedalzinho. Decerto compreendes agora porque venho de tão longe. Gostava, se for possível, de saber alguma coisa sobre esse feitiço.
O Dedalzinho, que sempre tivera bom coração, contou à velha, com todos os pormenores, o que acontecera: o canto das fadas no interior do túmulo, as quais o haviam aliviado da corcova dos ombros, além de que lhe tinham oferecido vestuário novo da cabeça aos pés.
A velha agradeceu-lhe, profundamente reconhecida e, imersa nos seus pensamentos, regressou a casa, satisfeita e muito feliz. Quando chegou junto da comadre, no condado de Waterford, descreveu-lhe exactamente tudo o que Dedalzinho dissera. A seguir, colocou num carro o corpo corcovado, que toda a sua vida tinha sido pérfido e malicioso, e partiu puxando-o. Tinha um longo caminho a percorrer, mas reflectia: "É-me indiferente, desde que ele se livre da corcova." Ao anoitecer, chegou à colina dos gigantes e deixou-o aí deitado.
Hans Madden, assim se chamava o corcovado, não havia ainda muito tempo que se encontrava ali, quando começou a ouvir a música na colina, ainda mais agradável que anteriormente, pois as fadas entoavam a sua canção com a apostila que tinham aprendido com o Dedalzinho — «Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Da Luan, Da Mort, Augus Da Cadine» -, sem interrupção. Hans, que ansiava por se desfazer da corcova o mais rapidamente possível, não esperou que elas terminassem de cantar, nem que chegasse o momento apropriado para acompanhar a melodia, como o Dedalzinho fizera. Quando havia mais de sete vezes seguidas que a tinham cantado, pôs-se a gritar sem atender ao ritmo, forma ou maneira de lhe ajustar as suas palavras, «Augus Da Dardine, Augus Da Henace», ao mesmo tempo que pensava: "Se uma apostila foi boa, duas ainda serão melhores. Se deram ao Dedalzinho um fato novo, a mim talvez dêem dois."
Mas, mal acabava de dizer isto, viu-se erguido pelos ares e arrastado com uma força prodigiosa para o interior da colina, onde as fadas, furiosas, gritando e uivando, o rodearam e perguntaram:
— Quem profanou o nosso canto? Quem profanou o nosso canto?
Uma delas adiantou-se e exprimiu-se assim:
Ah, Hans Madden! Ah, Hans Madden!
Mal, muito mal, entoaste
o que por nós era cantado!
Agora, estás aqui apanhado!
E que foi que ganhaste?
Ser duas vezes corcovado!
Ah, Hans Madden! Ah, Hans Madden!
E vinte das mais fortes arrastaram até ali a corcova do Dedalzinho e colocaram-na em cima da do infortunado Hans Madden, ficando tão colada como se a tivessem cravado com pregos de doze oitavos do melhor carpinteiro. A seguir, expulsaram-no a pontapés de sua casa.
Na manhã seguinte, quando a mãe dele e a sua comadre chegaram, ao verem aquele desprezível individuo estendido junto da colina, meio morto e com uma segunda corcova nas costas, observaram-no com curiosidade e encheram-se de medo de também ficarem assim. Levaram-no para casa, profundamente aflitas, fazendo pena ver duas velhas tão angustiadas. Pouco depois, esgotado pelo peso da segunda corcova e pela longa viagem, Hans morreu, deixando atrás de si uma grave maldição para todo aquele que quisesse escutar o canto das fadas.
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Há muito, muito tempo, vivia perto de Castlebar, no condado de Mayo, uma pobre viúva. Tinha apenas um filho, o qual, desde que completara cinco anos de idade, não crescera nem o correspondente a um dedo polegar, pelo que lhe chamavam Bweed-yach, ou seja, Polegarzinho.
Um dia — teria cerca de quinze anos -, a mãe deslocou-se a Castlebar, e, ainda não havia uma hora que partira, quando um corpulento caldeireiro ambulante e um asno preto assomaram à porta para ver se havia alguém dentro.
— Estás aí, mulher da casa? — perguntou o caldeireiro.
— Não — respondeu o Polegarzinho -, mas recomendou-me que não deixasse entrar ninguém até ao seu regresso.
O caldeireiro entrou e, quando o viu, disse:
— Acho bem que não queiras deixar entrar ninguém, mas na tua casa até um peru conseguiria penetrar.
O Polegarzinho deu um salto, atingiu o caldeireiro com um soco entre os olhos, agarrou-o pelas pernas e arrastou-o, e, quando o homem se recompôs, encontrava-se debaixo das patas do asno preto. O caldeireiro levantou-se enfurecido e quis agarrá-lo, mas o Polegarzinho atingiu-o então atrás da orelha e o outro tornou a cair aos pés do asno preto.
Este último começou a dar gritos lancinantes e quando o Polegarzinho quis verificar o que acontecera descobriu que o caldeireiro estava morto.
— Mataste o meu dono — acusou o asno preto -, mas não estou particularmente contrariado, pois ele maltratava-me com frequência.
O Polegarzinho ficou pasmado ao ouvi-lo falar e, olhando-o da cabeça aos pés, declarou:
— Tu não és um asno autêntico.
— Pois não. Sou-o apenas há sete anos. Passei tempos muito maus. Era filho de um nobre.
— Sim? Gostava que me contasses tudo mais pormenorizadamente.
— Então vamos sentar-nos num canto qualquer. Mas primeiro esconde o corpo do caldeireiro num monte de esterco, para a seguir te contar a minha história.
O Polegarzinho arrastou o cadáver até ao monte de esterco e enterrou-o.
Depois, entraram em casa, sentaram-se, e o asno negro começou a revelar tudo.
— Como disse, eu era filho de um nobre, mas, como me comportava pessimamente, morri com a pesada carga dos pecados mortais que tinha cometido. E estaria agora a arder no inferno, se a Virgem Maria não se compadecesse de mim. Costumava honrá-la todas as noites com uma pequena oração, pelo que, quando compareci ante o Grande Juiz e ele me condenou ao inferno, a sua mãe intercedeu por mim e alterou a sentença: converteu-me num asno preto e entregou-me ao caldeireiro, durante sete anos, até que este encontrasse a morte. Ele era carne do diabo e fui eu que te incuti as forças para o matares. Mas isto não significa que te livrasses dele. Dentro de sete dias, recuperará a vida e se então ainda estiveres aqui matar-te-á. Tão certo como agora estares vivo.
— Desde que nasci, nunca saí desta comarca — disse o Polegarzinho — e não abandonaria a minha mãe.
— Não será preferível abandoná-la a perder a vida em pecado mortal e arder eternamente no inferno?
— Não sei de lugar algum onde possa esconder-me. Mas já que foste tu que me deste as forças para matar o caldeireiro, talvez me possas indicar onde estaria a salvo.
— Alguma vez ouviste falar do lago Derg?
— Sim — assentiu o Polegarzinho. — A minha avó foi lá, certa ocasião, em peregrinação, mas não sei exactamente onde é.
— Amanhã à noite conduzo-te lá. Na ilha do lago, há um mosteiro subterrâneo onde vive um velho monge ao qual aparece a Virgem Maria todos os sábados. Expõe-lhe o teu caso e segue o seu conselho até ao mais ínfimo pormenor. Impor-te-á uma penitência, mas cumpri-la neste momento é melhor que o tormento eterno no inferno. Conheces a pequena fortaleza da colina que há atrás do castelo? Está lá três horas antes do anoitecer. Esperar-te-ei, para te acompanhar ao lago Derg.
— Se ainda viver, não faltarei, mas receio que o caldeireiro ressuscite antes de chegado esse momento.
— Não tens de te preocupar com isso, desde que não digas a ninguém que o mataste — asseverou o asno preto. — Se falares disso a alguém, ele levanta-se imediatamente e mata-te e à tua mãe.
— Juro pela minha alma que não direi uma única palavra -prometeu solenemente o Polegarzinho.
Quando, à tarde, a mãe regressou, perguntou se tinha ido lá alguém durante a sua ausência.
— Não, salvo um velho pedinte com um saco, mas não lhe dei nada — respondeu ele.
— E que vi marcas de cascos de um cavalo, ou asno, diante da porta, que não estavam lá esta manhã.
— Deve ter sido o idiota do Paidin Éamoinn, montado no burro de Big Mary O'Brien.
O Polegarzinho não conseguiu dormir em toda a noite, nem parar um único instante de pensar no caldeireiro e no asno preto, e cada vez o medo era maior. A mãe apercebeu-se e perguntou-lhe o que tinha.
— Não tenho absolutamente nada — garantiu-lhe ele.
Na noite seguinte, quando ela se foi deitar, o Polegarzinho saiu de casa furtivamente e correu para a pequena fortaleza da colina, onde o asno preto, que o aguardava, perguntou:
— Estás preparado?
— Preparado estou, mas aflige-me que a minha mãe não pudesse dar-me a bênção. Vai estar muito preocupada comigo até que volte a ver-me.
— Não se preocupará nada, porque há lá outro Polegarzinho, tão parecido contigo que nem lhe passará pela cabeça que não és tu. Naturalmente, farei com que desapareça antes que regresses.
— Estou-te muito grato. Fiquei mais animado para te acompanhar.
— Sobe para o meu dorso — indicou o asno. — Aguarda-nos uma longa caminhada.
Quando obedeceu, o Polegarzinho ouviu trovões e surgiram alguns relâmpagos enormes. Desceu do firmamento uma nuvem densa, que envolveu totalmente o asno preto e o seu ginete. O Polegarzinho não conseguia ver nada, sentiu um cansaço profundo e, quando acordou encontrava-se numa ilha do lago Derg, perante o velho monge, que lhe perguntou:
— Que te traz por cá, meu filho?
— Confesso que não sei muito bem.
— Depressa me inteirarei. Vem comigo.
O Polegarzinho seguiu-o por um túnel subterrâneo, até que chegaram a uma pequena câmara escavada na rocha.
— Agora, ajoelha-te e confessa os teus pecados — ordenou o monge. — Não ocultes nenhuma má acção.
O Polegarzinho obedeceu e descreveu tudo o que lhe tinha acontecido com o caldeireiro e o asno preto. No final, o monge impôs-lhe como penitência que caminhasse, durante sete dias e sete noites consecutivas, sobre rochas e pedras pontiagudas, de joelhos, sem comer nem beber. O castigo foi cumprido, e no sétimo dia já não restava pele nem carne nos joelhos, além de que, devido à fome, parecia uma sombra. Quando expiou todas as culpas, o monge reapareceu e anunciou-lhe:
— Chegou o momento de regressares a casa.
— Mas não conheço o caminho, nem sei como posso chegar até lá.
— O teu amigo, o asno preto, levar-te-á. Virá buscar-te esta noite. Quando chegares a casa, vive em conformidade com a vontade de Deus e não reveles a ninguém, excepto ao teu confessor, que estiveste aqui.
— Ainda tenho de temer o caldeireiro?
— Não, absolutamente nada. Entretanto, converteu-se em asno e anda por aí com um caldeireiro de Munster. Manterá essa aparência durante vinte e um anos e depois ingressará no sono eterno. Agora, volta para a tua cela. Quando anoitecer, ouvirás uma campainha. Sobe então à ilha, onde o asno preto estará à tua espera, para te levar a casa. Aceita a minha bênção.
O Polegarzinho regressou à sua câmara e, quando ouviu a campainha, subiu à ilha, onde encontrou o asno preto, que o aguardava com impaciência.
— Sobe depressa para o meu dorso. Não tenho um segundo a perder.
O Polegarzinho obedeceu e ouviu imediatamente trovões e viu relâmpagos. Uma nuvem densa desceu do firmamento e envolveu-o, bem como ao asno preto. Ele mergulhou em sono profundo e, quando acordou, estava na pequena fortaleza da colina juntamente com o seu amigo.
— Agora, vai ter com a tua mãe — indicou-lhe este último. O outro Polegarzinho já não se encontra lá. Ela está imersa num sono profundo e não se dará conta da tua chegada.
— E verdade que não tenho nada a recear do caldeireiro?
— Porventura o venerável monge não to garantiu? — replicou o asno preto. — Tratarei de te proteger. Introduz a mão na minha orelha esquerda, onde encontrarás uma pequena bolsa com dinheiro, a qual nunca se esvaziará enquanto viveres. Pratica o bem com os pobres, viúvas e órfãos e ser-te-á concedida uma vida longa, uma morte feliz e, finalmente, o céu.
O Polegarzinho regressou a casa e foi dormir, sem que a mãe se tivesse inteirado de que alguém substituira o filho<./span>
No fim da semana, ele perguntou-lhe:
— Hoje há mercado em Castlebar?
— Com certeza — confirmou ela.
— Devias ir lá comprar uma vaca.
— Não digas disparates desses, se não queres que a desgraça te caia em cima.
— O que acabo de dizer não é nenhum disparate. Deus fez com que encontrasse uma bolsa com dinheiro mais do que suficiente para comprar uma vaca.
— Não o podes ter conseguido honradamente. Diz-me de onde o tiraste.
— Não to posso revelar, mas apenas assegurar-te que o obtive o mais honestamente possível. Peço-te apenas que acredites.
Como quase todas as mulheres, ela era também um pouco ambiciosa.
— Dá-me o dinheiro para a vaca.
Ele entregou-lhe vinte moedas de ouro.
— Com isto, podes comprar um óptimo exemplar.
— Assim farei, mas já agora dá-me também mais algum para um porco.
— Não sejas ambiciosa, mulher — advertiu. — Por hoje, já chega.
A mãe foi ao mercado, comprou uma vaca leiteira e dois fatos para o Polegarzinho, o qual, na sua ausência, procurou o cura da aldeia, para se confessar.
E descreveu então o que lhe acontecera com o caldeireiro e o asno preto.
— És um bom rapaz — disse o padre. — Dá-me algum dinheiro.
O Polegarzinho entregou-lhe vinte moedas de ouro, porém o outro não se considerou satisfeito e pediu-lhe ainda o preço de um cavalo.
— Nunca pensei que os sacerdotes fossem tão ambiciosos — observou o Polegarzinho. — Vejo, no entanto, que nisso se parecem com as mulheres. Aqui tens mais vinte moedas de ouro. Estás satisfeito, agora?
— Estou e não estou — volveu o outro. — Tens uma bolsa de dinheiro que nunca se esvaziará enquanto viveres, pelo que me deves dar o suficiente para que possa construir uma igreja magnífica, em vez desta miserável capela que a comunidade tem neste momento.
— Então, contrata pedreiros e manda-os iniciar as obras nesse sentido. Pagar-lhes-ei o salário todas as semanas.
— Preferia que me desses o dinheiro já. Mil moedas de ouro devem bastar. Se mas entregares, mandarei proceder à construção imediatamente.
O Polegarzinho extraiu mil moedas de ouro da bolsa e deu-lhas. Entretanto, a bolsa parecia tão cheia como anteriormente.
Ele regressou então a casa, onde a mãe já se encontrava, com uma bela vaca e fatos novos para o filho.
— Na verdade, é um magnífico animal — reconheceu o Polegarzinho. — Agora, podemos dar um pouco de leite aos pobres, todas as manhãs.
— Terão de esperar que se faça manteiga. Dar-lhes-ei o soro... até comprar um porco.
— Devias dar-lhes o leite fresco. Quanto à manteiga, podemos comprá-la.
— Perdeste o juízo — replicou a mãe. — Infelizmente, a pouca riqueza que Deus te enviou há-de fazer-te falta quando eu estiver na sepultura.
— Como sabes que não serei sepultado primeiro? — retrucou o Polegarzinho. — De qualquer modo, Deus há-de cuidar de mim.
Enquanto se exprimiam nestes termos, apareceu uma mulher andrajosa com três filhos a pedir uma esmola por amor de Deus e da Virgem Maria.
— Hoje, não tenho nada para vocês — disse a viúva.
— Não é verdade, mãe! — exclamou o Polegarzinho. — Tenho de dar esmolas em nome de Deus e da Virgem Maria. — Entregou uma moeda de ouro à mulher e voltou-se de novo para a viúva.
— Ordenha a vaca, para que estas pobres crianças possam beber algum leite.
— Nem pensar — declarou ela.
— Então, faço-o eu próprio.
Pegou num recipiente, ordenhou a vaca e deu o leite fresco às crianças e à mulher.
Quando se retiraram, a mãe advertiu o Polegarzinho:
— A bolsa não tardará a ficar vazia.
— Isso não me assusta. Foi Deus que ma enviou e quero utilizá-la o melhor possível.
— Procede como entenderes, mas acabarás por te arrepender. No dia seguinte, acudiu gente em tropel para ver o Polegarzinho e pedir-lhe esmola, e ele não permitiu que ninguém se retirasse de mãos vazias. O seu nome e fama propagaram-se a todo o país, e havia quem dissesse que fizera um pacto com as fadas. Outros, todavia, afirmavam que havia sido o diabo quem lhe dera o dinheiro, pelo que o denunciaram ao cura da comunidade. No entanto, este garantiu-lhes que o Polegarzinho era uma criatura honesta e que o que possuía viera de Deus e utilizava-o da melhor maneira.
O Polegarzinho começou de repente a crescer, até que chegou a medir quase um metro e oitenta. A mãe morreu e ele apaixonou-se por uma jovem, com a qual não tardou muito a casar.
Mas, a partir daquele dia, a felicidade terminou. A esposa em breve descobriu a existência da maravilhosa bolsa de dinheiro e, por mais que pedisse e ele lhe desse, nunca se considerava satisfeita. Quando lhe negava alguma coisa, não o deixava em paz de noite nem de dia, até que ele decidiu entregar-lhe a bolsa. Quando a teve em seu poder, ela não esteve com hesitações.
Dirigiu-se rapidamente a Castlebar para comprar belos e magníficos tecidos de seda, mas, quando abriu a bolsa para pagar, descobriu que, em vez de moedas de ouro, continha pedras. Regressou a casa enfurecida e gritou ao Polegarzinho:
— Muito bonito como te divertiste à minha custa! Deste-me uma bolsa cheia de pedrinhas, em vez da que contém as moedas de ouro!
— Dei-te a correcta. Não tenho outra.
Pegou nela, abriu-a e depararam-se-lhe realmente pequenas pedras. Ficou tão amargurado, que não tardou a toldar-se-lhe o uso da razão. Arrancava os cabelos, corria e embatia fortemente com a cabeça na parede. Foram chamar o cura para que lhe acudisse, mas nem este conseguiu acalmá-lo. O Polegarzinho arrancou a roupa do corpo e vagueou nu e desvairado pela comarca.
Uma semana mais tarde, encontraram-no morto debaixo de uns arbustos que havia perto da pequena fortaleza da colina. Os arbustos continuam ali, e as pessoas chamam-lhes "o matagal de Bweed-yach", ou seja, "o matagal do Polegarzinho". No que se refere propriamente a ele, convém acrescentar que decerto foi para o céu.
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Há muito, muito tempo, os campos estavam cheios de pessoas, na sua maioria malabaristas, cantadores, tocadores de violino e outros músicos. Chegou um momento em que os habitantes expulsavam da sua porta quem não soubesse tocar música ou executar qualquer outra diversão.
Mas houve uma vez um jovem caminhante chamado Paití Nábla Móire, que não sabia histórias, nem canções, e era tão triste que ninguém fazia caso dele, nem o queria receber em sua casa. Uma noite, chegou a Teilionn e andou de porta em porta à procura de alojamento, mas ninguém o aceitava. Continuou, então, a caminhar e não se deteve até chegar a Glen, onde também não encontrou acolhimento. Por fim, bateu à porta de um homem que não era dali, cuja mulher disse:
— Como não tens qualquer diversão para oferecer, não te recebo com gosto, mas, em todo o caso, não acho acertado bater com a porta na cara de ninguém, sobretudo a uma hora tão avançada. Podes ficar até amanhã no palheiro que há aí fora.
— Agradeço-te de todo o coração.
Paití Nábla Móire encaminhou-se para lá e instalou-se o melhor possível entre a palha.
Havia algum tempo que estava deitado, quando entraram três homens que transportavam um cadáver, um dos quais lhe deu um pontapé.
— Levanta-te, Paiti Nábla Móire, e vela este homem até ao amanhecer — ordenou-lhe. — E o nosso pai, que morreu, e temos de ir procurar comida. — Acenderam uma fogueira junto do corpo sem vida. — Aconteça o que acontecer, não deixes as chamas chegarem à mortalha.
O infortunado Paití ficou a guardar o cadáver o melhor que podia. Um pouco mais tarde, pareceu-lhe que o morto o olhava, pelo que se encolheu a um canto atrás da porta, fora do seu campo visual. De repente, levantou-se uma forte rajada de vento, que abriu a porta violentamente e espalhou o lume, pelo que a mortalha também ardeu, ante o profundo pavor de Paiti. Só Deus sabia a angústia terrível que o assolou!
Pouco depois, regressaram os três irmãos.
— Fizeste um bonito serviço, Paití Nábla Móire! A mortalha ardeu! Vais ter de pagar por isso. Lançar-te-emos ao lume, para que ardas também.
Dois deles seguraram-no pela cabeça e pelos pés, mas o terceiro disse:
— Larguem-no. Talvez nos possa ajudar a enterrá-lo.
Por conseguinte, levaram-no para fora do palheiro e começaram a abrir uma fossa com a pá. Ao mesmo tempo, puseram-se a discutir — um achava que era suficientemente grande e o outro pensava o contrário.
— Está bem — acabou por dizer um. — O Paití e o nosso pai são da mesma estatura. Atiremo-lo a ele para a cova. Se couber, também servirá para o pai.
Assim, pegaram no cada vez mais alarmado Paití, largaram-no na abertura e lançaram-lhe em cima algumas pazadas de terra. Quando tentava levantar-se, um dos irmãos atingiu-o com a pá na cabeça. Deste modo, permaneceu deitado até que ficou totalmente coberto, enquanto soltava uivos de medo tão intensos que quase poderiam comover as pedras. Finalmente, o dono da casa ouviu os gritos e inteirou-se da loucura que se desenrolava no palheiro. Levantou-se da cama, correu para lá e, quando abriu a porta, o infortunado Paiti já perdera o juízo em virtude do pânico.
— Céus! — bradou. — Que aconteceu?
— Fiz mal em ficar na tua casa — lastimou-se Paiti. — Deus e a Virgem Maria sabem bem a noite que passei.
— Vem comigo — indicou o outro. — Dar-te-ei de comer antes que sigas o teu caminho.
— Não, obrigado.
— Tens de me acompanhar, para que te compense de certo modo dos aborrecimentos que sofreste.
— Passei a noite mais horrível de toda a minha vida.
Quando terminaram de tomar o pequeno-almoço, o homem disse:
- Tiveste muita sorte em vir ontem a minha casa, depois de vagueares por aí sem que ninguém quisesse receber-te. Doravante, não haverá nenhuma em que queiras entrar sem que sejas bem recebido, pois já tens uma bela e longa história para contar!
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Vivia na Irlanda, há muito tempo, um homem a quem chamavam Gobán Saoir, que era um exímio carpinteiro. Naqueles tempos, era costume construir as casas de madeira, e ninguém o fazia melhor que ele. O seu nome tornara-se famoso em todo o país, pelo que todas as pessoas de certa classe e renome lhe pediam que construísse as suas habitações.
Tinha apenas um filho, que trabalhava com ele, e muita gente recorria a eles, quando precisava de bons profissionais. Um dia, Gobán Saoir decidiu procurar uma mulher para o filho. Como a sua própria esposa estava a envelhecer, concebeu um plano para o ajudar a conseguir uma companheira satisfatória.
Ordenou ao rapaz que fosse buscar uma ovelha e sacrificou-a. Em seguida, retirou-lhe a pele meticulosamente, enrolou-a e guardou-a até ao dia de mercado seguinte.
— Leva a pele da ovelha à cidade, hoje — indicou ao filho. -Depois, volta a trazê-la e o dinheiro que te derem por ela.
O jovem pôs-se a caminho e, ao chegar ao mercado, estendeu a pele no chão. As pessoas que passavam perguntavam-lhe quanto pedia por ela e ele respondia que queria conservá-la em seu poder, juntamente com o preço que tinham de lhe pagar. Todos reconheciam que não devia regular bem da cabeça e, ao anoitecer, regressaram a casa e ele à sua com a pele.
— Vendeste-a? — perguntou o pai.
— Não consegui. Julgavam-me louco.
— Bem, tentarás outro dia.
— Para quê? — replicou o filho. — Com essa condição, ninguém ma comprará!
— Garanto-te que a hás-de vender, ainda que demores um ano.
No dia de mercado seguinte, o pai mandou o jovem novamente ao local, assegurando-lhe que venderia a pele. O filho colocou-se no mesmo lugar, e a história repetiu-se. Quando aparecia um interessado e ele o advertia de que teria de manter a pele em seu poder, juntamente com o dinheiro do preço pedido, desinteressava-se. No fim do dia, o mercado encerrou as portas e ele enrolou a pele e regressou a casa.
— Então, vendeste-a? — perguntou o pai.
— Não — respondeu o rapaz. — Fartaram-se de rir de mim.
— Tens de voltar a tentar.
— Aposto o que quiseres que farei essa viagem em vão.
— De qualquer modo, tens de efectuar mais uma tentativa.
Quando se dirigia mais uma vez para o mercado, cruzou-se com uma jovem das imediações, que vinha da fonte com um cântaro de água e lhe perguntou:
— Vais ao mercado?
— Vou, mas acredita que não me apetece nada.
— Que te leva lá?
— Tenho de vender esta pele de ovelha e hoje é a terceira tentativa, mas duvido que o consiga.
— Nesse caso, porque vais lá?
— Estou numa situação muito difícil. Tenho de a entregar ao meu pai, juntamente com o dinheiro que custa.
— E ninguém a quer comprar?
— Ninguém. No mercado, todos se riem de mim.
— Acompanha-me a casa — propôs ela. — Talvez eu ta compre.
O jovem assentiu, sabendo que se tratava da serviçal de um agricultor que vivia perto dali. Uma vez chegados, ela pousou o cântaro e pediu:
— Tira a pele do saco, para que a veja.
Ele obedeceu e desenrolou-a diante da lareira. Em seguida, ela pegou numa tesoura, cortou a lã e pesou-a.
— Pronto — anunciou. — A pele tinha dois quilos de lã e cada quilo custa oito pence. Aqui tens o dinheiro da lã. Podes ficar com o coiro e levá-lo ao teu pai, exactamente como ele te recomendou.
E o jovem regressou a casa satisfeito. Quando Gobán Saoir lhe perguntou se vendera a pele, respondeu:
— Vendi, e não tive de ir muito longe. Comprou-a uma jovem. Deu-me o dinheiro da lã, que ela própria cortou da pele com uma tesoura, e deixou-me ficar com o coiro, mas não sei se isso é do teu agrado.
— E, sem dúvida, porque tudo resultou como eu desejava. Agora, procura essa moça e pede-lhe que venha esta noite. Mas atenta no seguinte: não deve vir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, não pode trazer companhia, mas não deve vir só. E não entrará, nem ficará lá fora.
— Com a breca! — exclamou o jovem. — Que exigências tão estranhas!
— Vai e faz o que te mando.
O filho de Gobán Saoir dirigiu-se à herdade e, quando chegou, perguntou pela jovem à dona da casa.
— Foi buscar batatas ao campo — informou ela. — Podes ir lá procurá-la.
Quando o viu, a jovem mostrou-se surpreendida.
— Não me digas que o teu pai não ficou satisfeito com a venda da pele!
— Não venho por causa disso. Ele quer que o visites esta noite, mas não deves ir nem por estrada, nem por caminho, nem através do campo. Além disso, tens de ir só, mas acompanhada. Como se isso não bastasse, não podes entrar em casa, nem ficar fora.
— Muito bem — concordou. — Comunica-lhe que não faltarei.
Depois de colher as batatas e terminar as outras tarefas que lhe competiam, ela pôs-se a caminho, mas antes chamou o cão. Depois, subiu ao alto valo que se estendia da herdade até à porta da casa de Gobán Saoir e só desceu de lá quando se encontrou no final. Por fim, colocou um pé dentro da porta e o outro fora.
— Que Deus e a Virgem Maria estejam contigo — proferiu.
— Não queres entrar? — convidou Gobán.
— Segundo a tua ordem, não devo entrar nem ficar fora. Como vês, encontro-me entre os dois pilares da porta.
— Tens toda a razão. Que caminho utilizaste?
— Vim pelo alto valo, do qual só desci aqui, no umbral da porta.
— E a tua companhia? — insistiu ele. — Quem está contigo?
— Este — disse ela, chamando o cão, cujo nome era Sólan.
— Tens razão, mais uma vez. Não estarás só, enquanto se conservar a teu lado. Muito bem. Podes entrar.
Assim fez e sentaram-se à mesa, para saborear um jantar excelente.
— O que eu pretendia, minha querida jovem, era o seguinte -explicou Gobán. — Uma boa dona de casa para o meu filho, e ficaria muito satisfeito se fosses tu. Resta-me fazer a pergunta sacramental. Queres casar com ele?
— Fá-lo-ei de bom grado, desde que queira casar comigo.
O filho do carpinteiro declarou-se encantado com a ideia, pelo que assinaram o contrato matrimonial.
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Noinín, filha do rei do Mundo Ocidental, saiu, um dia, a passear e, enquanto caminhava, viu o pássaro Sgiathán Dearg e considerou que era o mais belo que jamais se lhe deparara.
— Seria feliz se pudesse estar com esta ave! — exclamou.
Sgiathán Dearg esvoaçou em torno dela durante uns momentos, aproximou-se mais e acabou por desaparecer no bosque.
A filha do rei saiu a passear no dia seguinte, o pássaro tornou a aparecer e ela pensou que era ainda mais belo e tentou apanhá-lo, mas não conseguiu. No terceiro dia, o pássaro esvoaçou ainda mais perto. — Gostava tanto de ter esta admirável ave! — exclamou ela.
Sgiathán Dearg aproximava-se cada vez mais. Por fim, logrou apanhá-lo, acariciou-o, beijou-o e levou-o para casa.
Em seguida, pediu que lhe levassem uma gaiola espaçosa, onde o introduziu e conservou no seu quarto, dando-lhe de comer todas as iguarias que ela própria consumia.
A noite, a criada entrou no aposento e, na gaiola, viu um homem em vez de um pássaro. Quando ela se retirou, Noinín voltou-se para Sgiathán Dearg, que lhe explicou:
— Estou sob a influência do feitiço da rainha de Gleann Dearg. Todas as manhãs sou um pássaro, mas à noite recupero a minha forma normal e converto-me em homem. Fico aqui empoleirado e constrangido, entregue ao meu sofrimento. Liberta-me da gaiola, ainda que por pouco tempo, até ao amanhecer.
Ela abriu a porta da gaiola e conversaram até ao romper da alvorada, quando o homem voltou a transformar-se em pássaro, mas não voltou para a gaiola, e a jovem não conseguiu apanhá-lo. Manteve-se no quarto e, quando abriram a porta, saiu disparado e ficou a esvoaçar em redor do castelo.
No quarto dia, Noinín foi passear, para ver se conseguia voltar a apanhá-lo. Estava ansiosa e não se sentia tão bem-disposta como em outras ocasiões. Seguiu atrás de Sgiathán Dearg, rapidamente, esforçando-se por capturá-lo. Assim continuaram durante grande parte do dia, até que chegaram a uma colina. Perto do topo, ela esforçou-se mais uma vez por apanhá-lo, mas, de repente, a encosta abriu-se e ele desapareceu através da abertura, que se tornou a fechar com prontidão. A filha do rei ficou assim abandonada num lugar que não conhecia, pelo que passou a noite na colina, com a esperança de que Sgiathán reaparecesse na manhã seguinte.
No entanto, amanheceu, e o pássaro continuava ausente. Noinín achava-se perante um grande problema e dominada por profunda angústia, consciente de que os pais e demais familiares deviam estar alarmados com a situação. Por fim, começou a afastar-se da colina e caminhou durante todo o dia, até que começou a anoitecer e avistou um belo castelo ao longe. Ao aproximar-se, deparou-se-lhe uma porta enorme ricamente ornamentada, alta e magnífica. Bateu e surgiu uma mulher, que inquiriu:
— Que pretendes, minha filha? Para onde te diriges?
— Venho pedir alojamento para esta noite.
— Tê-lo-ás, assim como jantar, pois deves estar faminta, depois de um longo percurso. És forasteira nesta região, onde passa muito pouca gente. Queres dizer-me como te chamas?
— Sou do Mundo Ocidental e o meu nome é Noinín.
— Que te trouxe para estes lados?
A jovem descreveu toda a história, sem omitir um único pormenor — como conhecera Sgiathán Dearg e o capturara, para depois o perder e perseguir pela segunda vez, vagueando sem rumo definido, até que avistara o castelo.
— Queres entrar para o meu serviço? perguntou, no final, a mulher.
-Sim.
Não se sabe que salário Noinín pediu, nem se chegou a receber algum, porém a mulher explicou-lhe:
— Trabalharás para mim durante um ano e um dia. Suponho que não sabes a quem pertence este castelo?
— De facto, não faço a menor ideia.
— Trata-se da casa do vento e eu sou a rainha do vento.
Quando tinham decorrido três quartas partes do ano, Noinín teve um filho, mas cumpriu todo o período combinado. A mulher nunca lhe encontrou qualquer defeito, nem falou mal dela. No entanto, no termo do prazo, decidiu:
— Não podes continuar aqui. Não quero uma criança a crescer em minha casa. Tens plena liberdade para ir para onde quiseres e trabalhar noutro lugar. — Fez uma pausa e acrescentou: — Ofereço-te este anel. Quando olhares através dele, não terás fome nem sede e verás tudo à tua volta, esteja perto ou distante, à vista ou oculto.
Noinín partiu com o filho e viajou até quase anoitecer. Nessa altura, olhou através do anel, descobriu um elegante castelo e dirigiu-se para lá. Do lado da frente, havia uma porta e um belo prado. Ela bateu e apareceu uma mulher de aspecto agradável.
— Que pretendes?
— Preciso de alojamento por uma noite. Venho de longe e estou muito cansada. Não avistei qualquer casa, além desta.
— Terás alojamento, porque é muito pouco frequente aparecer alguém. Entra. — Noinín seguiu-a, e ela perguntou: — Diz-me quem és.
— Noinín, do Mundo Ocidental. Procuro uma casa para servir.
— Durante quanto tempo?
— O que desejares, mas espero que me seja permitido conservar o meu filho junto de mim.
— Com certeza. Porque não?
— Ele não provoca problemas — assegurou a jovem. — Basta dar-lhe de comer. Não é travesso nem incomodativo.
— Ficarás ao meu serviço um ano e um dia — decidiu a mulher.
Noinín serviu na nova casa com boa vontade. O que a criança não crescia de dia, fazia-o ao longo da noite e, se não era de noite, crescia durante o dia, e ninguém pode imaginar o que aumentava.
— Sabes que casa é esta? — perguntou a mulher.
-Não.
— Não me parece bem que uma pessoa sirva sem saber onde. É a casa da lua e eu sou a rainha da Lua.
As relações entre ambas eram satisfatórias e Noinín uma serviçal excelente: conhecia todos os trabalhos e executava-os o melhor que sabia. Quando transcorreu um ano e um dia, a rainha declarou:
— O teu filho está a crescer muito depressa e tudo indica que será enorme. Não podemos permitir que uma pessoa assim viva mais tempo nesta casa.
— Então, tenho de partir — admitiu Noinín -, pois não posso continuar aqui sem ele.
— Antes de saíres, dar-te-ei um presente. — A mulher entrou num aposento do castelo e reapareceu com um gorro com desenhos e uma varinha. — Pode acontecer ires a um lugar e não saberes onde estás ou como sair de lá. Se tal acontecer, basta pores este gorro e dizer "Desejo encontrar-me neste ou naquele sítio, ou nesta ou naquela rua", para te veres lá imediatamente. Com a varinha, podes abrir caminho através de qualquer lugar ou restituir uma pessoa enfeitiçada à sua forma anterior.
Noinín aceitou o gorro e a varinha, abençoou a mulher e partiu. Durante todo o dia não viu senão páramos e lugares silvestres. Ao anoitecer, lembrou-se do anel que tinha consigo desde que estivera na casa do vento, olhou através dele e avistou um grande castelo, com um pátio nas traseiras e um prado em frente. Quando lá chegou, bateu à porta, que foi aberta por uma mulher formosa.
— Que pretendes ou esperas encontrar aqui?
— Alojamento para esta noite, se estiveres disposta a oferecer-mo respondeu a jovem.
— Dar-to-ei, porque é muito pouco frequente ver uma pessoa desconhecida nestes lados. Que idade tem o teu filho?
— Um ano, três meses e dois dias.
— Se é tão jovem, quando crescer será o maior herói do mundo. Queres entrar para o meu serviço?
-Sim.
— Agora, fala-me de ti. Conta-me tudo e com sinceridade.
Noinín narrou toda a história. No final, a mulher perguntou:
— Sabes que castelo é este?
-Não.
— A casa do Sol e eu sou a rainha do Sol.
A jovem executou perfeitamente o serviço até decorrer um ano e um dia. Não se pode descrever nem explicar como a criança crescia continuamente, nem quanto media.
— Não podemos ter um homem assim cá em casa — anunciou a rainha do Sol. — Deves preparar-te para partir, mas podes ficar mais um dia comigo. Passaste muitas dificuldades e ainda conhecerás mais do que possas imaginar, mas talvez acabes por encontrar dias melhores.
Noinín ficou mais um dia e, na manhã seguinte, viu três corvos diante da janela numa colina. Naquele momento, as aves lutavam umas com as outras.
— E uma pena ver dois matar um — disse o filho.
— Não te preocupes com os corvos — respondeu Noinín. -Não é fácil saber se convém ou não que te intrometas.
Quando anunciou à rainha que tencionava partir na manhã seguinte, esta última discordou.
— Não irás ainda. Gosto da tua companhia. Quero conversar contigo mais tempo.
Na manhã imediata, viram os três corvos pela segunda vez.
— E uma pena ver dois matar um — observou o filho.
— Já te disse ontem que não te preocupasses com isso — lembrou-lhe Noinín.
— Mas preocupo-me! Tenho de ajudar o terceiro corvo.
— Não o farás — decidiu, e, nesse dia, impediu-o de ir ter com as aves.
Mais tarde, falou com a rainha:
— Estou a causar-te mais problemas do que devia e a atrasar
-me demasiado.
— Fica comigo hoje, e não to pedirei mais. Tenho algumas outras coisas para te dizer.
Mais uma vez, os três corvos lutavam, dois contra um.
— É uma pena ver dois matar um — tornou a repetir o filho. -Tenho de ajudar o terceiro.
— E difícil manter-te afastado da peleja — reconheceu Noinín, e desta vez não se opôs.
— Tenho uma irmã que afastaram de mim há muitos anos -informou a rainha do Sol. — Agora, que viajarás por lugares solitários e estranhos, abre bem os olhos para veres se a descobres. E impossível prever se voltarás a passar por aqui, mas se tal acontecer avisa-me. Dar-te-ei uma toalha de mesa que, caso necessites, te proporcionará comida e bebida em abundância. Aqui a tens.
O filho dirigiu-se à colina onde se encontravam os corvos.
— E uma vergonha dois tentarem matar um.
— Mais valia que te preocupasses contigo, em vez de vires incomodar-nos — replicou uma das aves.
— Seja como for, vou pôr termo a isto. A partir de agora, só lutará um contra um e o terceiro comigo.
O filho de Noinín lutou com um dos corvos, que voava à sua volta e sobre a sua cabeça, disposto a abatê-lo, quando o jovem lhe apontou a espada e deu uma estocada. O sangue da ave jorrou para a sua mão e, quando a agitou, atingiu outro corvo. Acto contínuo, este transformou-se no homem mais elegante do mundo. Quando o rapaz se deu conta do sucedido, disse ao segundo corvo:
— Não tenho nada contra ti que não tenha contra este.
Salpicou-o de sangue e viu que se convertia num homem como o anterior.
Noinín despediu-se da rainha e empreendeu a marcha com os dois homens e o filho. Os homens iam à frente e, quando começava a anoitecer, chegaram a uma abertura estreita numa enorme escarpa, que se fechou no momento em que eles acabavam de a transpor. Noinín puxou da varinha oferecida pela rainha da Lua e aplicou uma pancada, depois outra e finalmente uma terceira. A passagem abriu-se e ela desceu ao Mundo Inferior, à terra mais magnífica que se podia conceber. Os dois homens encontravam-se lá, na sua frente. Reataram o caminho, que se prolongou por muito tempo. Havia luz a jorros e um campo admirável, com cada zona melhor e mais admirável que as precedentes.
Noinín lembrou-se então do gorro e pô-lo na cabeça, ao mesmo tempo que dizia:
— Desejo que se abra caminho até Gleann Dearg.
Abriu-se imediatamente e eles viajaram longo tempo, não se sabe quanto, até que chegaram a Gleann Dearg, mas não podiam ver nada, porque estava tudo coberto de pó, neblina e um feitiço ofuscante. Encontravam-se esgotados e debilitados pela fome, e não se avistava comida em parte alguma. Noinín lembrou-se então da toalha que trouxera da casa do Sol e não tencionava utilizar até que se visse muito necessitada. Estendeu-a no chão e verificou que estava coberta de comida e bebida em abundância. Todos comiam com prazer, quando surgiu um cisne, que se apoderou da melhor iguaria e voou para longe. Passado pouco tempo, reapareceu e levou outra.
— Se voltas a fazer isso, utilizo a varinha — ameaçou o filho.
O cisne apareceu pela terceira vez, e descia suavemente, quando o filho de Noinín pegou na varinha e o atingiu com ela. No instante imediato, o cisne caiu no chão, transformado numa bela mulher, a irmã da rainha do Sol, que disse a Noinín:
— Esperei durante muito tempo pela chegada do filho de Sgiathán Dearg para quebrar o feitiço que me subjugava. Bem sei que te trouxe nesta direcção. Agora, fica aqui. Estes dois heróis proteger?te?ão até que voltemos. O jovem e eu partiremos juntos. E partiram os dois.
— Não tardarás a ver o rei — referiu a cunhada do Sol ao filho de Noinín -, pois ele já sabe que vamos, mas não quem somos. Quando te perguntar quem és e onde vais, responderás que és o filho de um pai e de uma mãe da Irlanda do Norte, já falecidos, e viajas com a tua irmã. Procuras um lugar em que ela possa ficar a servir. Ele aceitar-me-á então para criada de quarto da filha. Tu ficarás nas proximidades, pois eu sairei a dar uma volta todas as noites. Em virtude do cargo que exercer lá, poderei inteirar-me do que se passa no castelo.
Com efeito, o rei de Gleann Dearg contratou a cunhada do Sol para ficar ao serviço da filha. No dia seguinte, a princesa e a criada saíram a passear.
— Isto é um lugar escuro e solitário — disse esta última. — Como consegues suportar a vida aqui, onde só há nevoeiro espesso?
— Não te preocupes — replicou a filha do rei. — Vem comigo, para darmos uma volta.
Andaram até chegar a um castelo, que, outrora, devia ter sido sumptuoso. Na porta, havia uma anilha, e a princesa indicou, apontando-a:
— Puxa-a. — A criada obedeceu. — Agora olha em volta.
A terça parte da planície estava iluminada com intensidade. Tornou a puxar a anilha, e a luz propagou-se a dois terços. Ao terceiro puxão, a iluminação foi total.
— A minha mãe enfeitiça esta planície todas as manhãs para toda a gente, excepto para si própria, e permanece assim até à noite. Nessa altura, fica tão escura para ela como para os outros, mas se um homem conhece o segredo dos puxões da anilha, pode iluminar a planície, como nós acabamos de fazer.
Na noite seguinte, a criada saiu para se encontrar com o filho de Noinín. Passearam juntos e andaram longamente, até que chegaram ao castelo parcialmente em ruínas.
— Na sua época, era sumptuoso — disse ela.
— Ainda hoje se nota.
— Puxa essa anilha, mas com força.
Ele obedeceu, e a terça parte da planície tornou-se visível.
— Torna a puxar — indicou a criada.
Desta vez, tornaram-se visíveis dois terços. Ao terceiro puxão, toda a planície resplandecia.
— Também a podes arrancar, se quiseres.
O filho de Noinín assim fez, e o feitiço de Gleann Dearg desapareceu por completo.
— Agora, puxa a deste lado da porta.
No momento seguinte, uma voz proferiu:
— Sou Fear an Fháinne. Que pretendes de mim?
— Quero que a rainha e a sua filha não voltem a enfeitiçar esta planície e Sgiathán Dearg venha imediatamente.
O poder da rainha terminou nesse momento e, pouco depois, Sgiathán Dearg encontrava-se entre eles. Quando o filho de Noinín atingiu o pássaro Sgiathán Dearg com a varinha, este transformou-se num herói mais formoso que qualquer outro homem e acompanhou-os ao lugar onde Noinín e os outros o aguardavam.
— Tinhas-me visto antes? — perguntou Noinín.
— Sim — respondeu Sgiathán Dearg. — Com certeza.
— Porque não me procuraste ou foste atrás de mim, em vez de me deixares só no mundo, a lamentar-me e a vaguear por lugares solitários?
— Não estava dentro das minhas possibilidades. Dominava-me a magia da rainha de Gleann Dearg, que me obrigava a permanecer no seu castelo como homem todas as noites, excepto três em cada sete anos. Foram essas que passei no do teu pai ou perto dele. De resto, se te encontrasse sob a forma de pássaro, que poderia fazer por ti?
— Absolutamente nada — reconheceu Noinín.
O seu filho mantinha relações excelentes com a jovem princesa de Gleann Dearg. Amavam-se muito, casaram e ficaram a viver nesse país.
— Voltemos para a nossa casa e deixemos isto ao meu filho -propôs Noinín.
— Não desejo outra coisa — declarou Sgiathán Dearg.
E puseram-se a caminho em direcção ao Mundo Superior — os dois heróis que tinham sido corvos e a cunhada do Sol acompanharam-nos. Quando passaram perto da casa do Sol, Noinín sugeriu:
— Podíamos pernoitar aqui.
Assim fizeram. A rainha do Sol acolheu-os com entusiasmo, mostrando-se encantada e contente.
— Conheces esta mulher? — perguntou Noinín.
— Não — respondeu a rainha.
— Contaste-me que tinhas uma irmã que foi separada de ti há muitos anos.
— Sim, mas era então muito jovem. Não conheço esta mulher.
Noinín trouxera de Gleann Dearg a anilha que convocava Fear an Fháinne e chamou-o.
— Explica à rainha que esta mulher é a sua irmã — ordenou-lhe.
Fear an Fháinne narrou a história, a rainha acreditou e ele desapareceu imediatamente.
— O meu marido jaz aqui convertido numa pedra — informou a rainha. — Foi a rainha de Gleann Dearg que o reduziu a essa forma. Dá-lhe saúde e força de novo. Liberta-o.
— Puxa essa anilha — indicou-lhe Noinín. — Convoca tu própria Fear an Fháinne.
A rainha obedeceu. Acto contínuo, Fear an Fháinne devolveu ao Sol a sua força e brilho, encontrando-se perante a sua rainha, tão ágil e em bom estado como sempre.
Todos passaram a noite com alegria e prazer. Na manhã seguinte, ressuscitaram o corvo morto, o terceiro irmão. Os três homens que haviam sido corvos e lutado permanentemente na colina diante da casa do Sol eram irmãos de Sgiathán Dearg que também tinham sido enfeitiçados pela rainha de Gleann Dearg e continuariam a defrontar-se entre si, se não fossem resgatados.
Noinín regressou ao seu lar no Mundo Ocidental, acompanhada de Sgiathán Dearg e dos seus três irmãos.
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Vivia outrora em Baile Mór um homem bem-parecido que se chamava Seimin Rua, o qual, com a sua tripulação, conduzia o barco a um banco de peixes na baía de Donegal.
De súbito, o tempo mudou, o mar embraveceu e ameaçou fazê-los naufragar. Seimin, que se encontrava na popa do barco, viu uma onda gigantesca avançar na sua direcção. Descalçou um sapato e atirou-o contra o perigo. Pouco depois, viu uma segunda onda e apressou-se a descalçar o outro sapato e a atirar-lho, após o que o mar acalmou um pouco. Mas foi apenas uma breve pausa. Não tardou a avistar uma terceira, ainda mais ameaçadora que as anteriores, e os sete homens pensaram que ninguém os livraria de morrer afogados. No banco da popa, havia uma faca grande para cortar o isco. Seimin pegou nela e lançou-a contra o perigo. No momento imediato, a tempestade amainou e o mar ficou calmo e plano como uma prancha.
Regressaram a casa encharcados até aos ossos, e depararam-se-lhes as famílias desgostosas, por recearem não os voltar a ver. Não era, pois, de estranhar a alegria que a sua chegada lhes produziu. Depois de repartirem o produto da pesca e encalharem a embarcação na praia, recolheram às respectivas casas, sãos e salvos.
Anoiteceu, e Seimin estava sentado diante do lume, com a planta dos pés voltada para a fonte de calor. Rodeavam-no alguns vizinhos, aos quais descrevia as peripécias sofridas.
De repente, bateram à porta e alguém foi abrir. Era um ginete montado num cavalo branco, que perguntou se Seimin vivia ali. Em seguida, pediu que acudisse à entrada.
— Ficar-te-ia muito grato se viesses comigo e tirasses a faca que hoje cravaste no coração de minha irmã — anunciou-lhe.
Seimin apercebeu-se imediatamente de que espécie de criatura se tratava.
— Não tenciono abandonar esta casa, a menos que me garantas solenemente que nem eu, nem ninguém da minha família ou da tripulação sofrerá qualquer mal — tratou de advertir.
— Prometo-to, assim como que, ao amanhecer, regressarás a casa, são e salvo.
Seimin partiu com o ginete e não se voltou a saber dele até que o cavalo branco reapareceu na costa da praia Vermelha de Mullaghmore, em Connacht.
O animal subiu pela praia e acabou por desaparecer por uma porta, numa colina. Não passara muito tempo, quando chegaram a um palácio maravilhoso. O ginete desmontou de um salto e indicou a Seimin que o precedesse. A seguir subiram uma escada, até um aposento onde se encontrava uma jovem, a qual tinha cravada no coração a faca que ele atirara contra a perigosa onda e soltava gritos de dor.
— Arranca a faca! — exclamou ao vê-lo.
— Fá-lo-ei de bom grado, mas primeiro tens de prometer que não me incomodarás, nem à minha família, amigos e tripulação -replicou Seimin.
— Prometido! — arquejou ela.
Seimin extraiu a lâmina da faca do peito da jovem, que parou com os queixumes.
— Porque tentaste afogar-nos? — quis saber ele.
— Porque estou apaixonada por ti e queria ter-te só para mim.
— E não hesitavas em matar toda a tripulação?
— Não — asseverou. — Faria tudo neste mundo para que fosses apenas meu.
— Pois agora escusas de pensar nisso. Vou regressar a casa. Diante da porta, o ginete e o cavalo branco aguardavam Seimin, que subiu para a sela atrás do outro, e o animal não parou até chegar à casa onde o pescador vivia. Uma vez aí, o ginete despediu-se e Seimin não o voltou a ver.
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